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Reparação situa a ficção entre a realidade e a fantasia

Comparar livro e filme dele derivado por vezes encontra uma sintonia fina em duas obras de qualidade que se espelham e se complementam. Quem era fã do romance Reparação, lançado pelo britânico Ian McEwan em 2001, aguardou com expectativa e aprovou a adaptação cinematográfica de 2007, lançada no Brasil no ano seguinte com o título Desejo e Reparação, dirigida pelo também britânico Joe Wright.

O que funcionou para esse casamento ter dado tão certo, na avaliação da crítica e do público? O que poderia ter ficado melhor? Esse é o tema da próxima edição do projeto Adaptação – Entre a Literatura e o Cinema, que reúne no Instituto Ling o professor de literatura e escritor Pedro Gonzaga e o jornalista e crítico de cinema Roger Lerina. A dupla conversa com o público sobre as semelhanças e as diferenças que aproximam e afastam essas distintas formas de narrativa. O projeto teve início em 2021 no formato virtual. O próximo encontro será presencial, dia 30 de agosto, às 19h30, no auditório do Instituto Ling. Garanta o seu ingresso.

 

O que os olhos veem

Aclamado como um dos mais importantes livros de Ian McEwan, Reparação costura em sua sofisticada estrutura narrativa diferentes pontos de vista sobre uma história que, na primeira camada, descreve uma tragédia amorosa: dois jovens apaixonados têm o destino selado por uma mentira que os separa e os condena à infelicidade.

O romance, porém, se mostra muito mais complexo ao revelar seus protagonistas e o contexto social e histórico que os envolve. McEwan tece na metalinguagem camadas narrativas progressivamente mais intrincadas, alternando vozes que descrevem, racionalizam, conduzem ou são levadas por ações que se repetem sob novas perspectivas. E trata, ao fim, do próprio ofício de escrever e construir um universo particular, no qual se viaja como condutor ou passageiro.

 

Uma casa no campo

No ponto de partida da trama, o cenário está localizado no refúgio campestre dos Tallis, uma abastada família inglesa. O ano é 1935. Jack, o pai, trabalha para o governo em Londres e é uma figura ausente. Emily, mãe, parece aprisionada em um torpor, afligida por enxaquecas e resignada com a presumida infidelidade que mantém o marido apartado da família.

O casal tem três filhos: Briony, menina de 13 anos que enfrenta o turbilhão emocional da adolescência extravasando suas fantasias na escrita compulsiva; Cecília, 23, estudante da universidade Cambridge, dona de espírito livre, disposta a romper as amarras que limitavam o voo das mulheres de seu tempo à segurança de um bom casamento; e Leon, o primogênito, tipo pouco ambicioso que, apesar das oportunidades e da formação, está acomodado na burocracia sem maior relevância do serviço público.

 

Calor das emoções

Durante as férias de verão, a mansão agita-se para comemorar o aniversário de Leon, que surge acompanhado de um amigo, Paul Marshall, rico herdeiro de uma fábrica de chocolates. Chegam também três sobrinhos de Emily, os garotos gêmeos Pierrot e Jackson e a adolescente Lola. Está ali também Robbie, filho da empregada da casa que, amparado por Jack, tornou-se colega de Cecilia em Cambridge e se prepara para ir muito além cursando medicina.

Briony, Cecilia e Robbie são os personagens centrais de Reparação. Ora são protagonistas, ora são coadjuvantes das ações narradas e revistas sob um novo olhar. Seus passos se dão em meio à descrição detalhada que McEwan faz de cenários internos, paisagens rurais, usos e costumes. Existe um velado desconforto naquela aparentemente apaziguada e afetiva convivência entre os patrões e o rapaz sem berço. Robbie é um elemento de fricção. Em suas visitas, cuida do jardim da casa com a humildade de quem sabe de onde veio. Mas enxerga para onde vai com sua cultura e determinação. E não quer desperdiçar a rara chance de escalada social que se abre diante dele como futuro médico.

Uma tensão amorosa e sexual entre Robbie e Cecilia está aflorando. Cresceram juntos, mas separados nas expectativas para a vida adulta. Mas agora não há mais como segurar a paixão latente que eles mal podem consumar por conta de um episódio com doloroso desdobramento.

Em sua transição entre a infância e a adolescência, Briony não compreende bem o que vê ao longe da janela de seu quarto. Cecilia emerge de uma fonte diante de Robbie, com o vestido molhado e o corpo modelado em uma nada pudica exposição. Em seguida, a menina quebra a confiança de Robbie ao ler um bilhete que ele endereça à irmã, com a explícita descrição de um ato sexual que envelopou por engano – escreveu num impulso febril, pois o bilhete correto era um singelo pedido de desculpas pelo incidente que provocou na fonte. Briony não entende bem o que lê. Compreende o suficiente para ficar em choque. Logo adiante, ela flagra Robbie e Cecilia em um canto escuro da biblioteca. Firma-se em Briony a convicção de que Cecilia está sob ameaça de um predador sexual e é preciso protegê-la. Um episódio nebuloso após o jantar e a acusação da menina firme em suas certezas resultam na prisão de Robbie.

 

Tempos de guerra

Os dois atos seguintes de Reparação avançam para 1940. Se Hitler antes pairava como uma ameaça ainda não materializada para a Europa, a Segunda Guerra Mundial agora é uma trágica realidade. Cecilia rompeu relações com a família ao se ver sozinha na certeza da injustiça cometida e trabalha como enfermeira em Londres. Robbie foi libertado com a condição de servir ao exército e está no front, lutando na França ocupada pelos nazistas. O reforço britânico, porém, encontra-se encurralado no litoral, à espera daquele que ficaria celebrizado como o resgate de Dunquerque, um feito militar que conseguiu evacuar por via marítima mais de 300 mil homens.

Robbie foi ferido por um estilhaço. Abatido, mergulha nas lembranças da juventude na casa dos Tallis, nos seus fugazes momentos de paixão com Cecilia. Busca compreender a reviravolta talvez irreversível que sua vida sofreu. Briony também trabalha como enfermeira em Londres. Enquanto Cecilia alimenta a esperança do reencontro e do recomeço com Robbie, Briony ainda sonha em ser escritora e alimenta a esperança de ser perdoada pelo erro que convictamente cometeu.

 

Passando a limpo

O epílogo da história se passa em 1999 e evoca o sentimento que melhor traduz o título original do livro, Atonement, expiação (versão adotada em Portugal). Briony é uma escritora famosa e durante uma entrevista na televisão fala sobre seu novo livro, o qual acabamos de ler. Ou assim acreditamos.

McEwan entrega um desfecho surpreendente e arrebatador, no qual embaralha a expiação de Briony – aflição mais potente que uma reparação – reordenando a história contada até ali entre o que ocorreu de fato e que só se passou em uma imaginação consumida pelo remorso, que buscou numa obra de ficção reparar os danos que provocou no passado.

 

Adaptação para o cinema

Em um documentário sobre o processo de adaptação de Reparação para o cinema, tanto o diretor Joe Wright quanto o escritor Ian McEwan comentam sobre a dificuldade imposta para transformar em imagens ações descritivas e sentimentos que correm pelos pensamentos dos personagens.

Apesar de sua experiência como roteirista, McEwan declinou o convite para adaptar seu livro e preferiu atuar como produtor executivo do longa-metragem. O texto do filme, destaca o escritor, precisou reduzir 130 mil palavras para 25 mil. Após muito trabalho e retrabalho, o roteiro assinado por Christopher Hampton preserva integralmente as intenções do autor.

Joe Wright vinha do sucesso de outra adaptação literária, Orgulho e Preconceito (2005), baseado no clássico de Jane Austen. É a provável razão para seu novo filme ganhar no Brasil o título Desejo e Reparação, forçando uma continuidade temática que não existe.

Para o papel de Cecilia, o diretor renovou a parceria com Keira Knightley, elogiada por sua atuação em Orgulho e Preconceito. O papel de Robbie coube a James McAvoy. E a jovem Briony foi vivida pela revelação Saoirse Ronan – Romola Garai e Vanessa Redgrave encarnam a personagem em 1940 e 1999, respectivamente. No elenco também está o hoje famoso Benedict Cumberbatch como Paul Marshall.

Desejo e Reparação foi aclamado por crítica e público. Concorreu a sete Oscar e levou a estatueta de trilha sonora original, para Dario Marianelli – Saoirse foi indicada a melhor atriz coadjuvante. Entre os 51 prêmios conquistados, ganhou também o Globo de Ouro de melhor filme em drama.

 

Autor macabro

Ian McEwan está com um livro novo a caminho. Previsto para setembro, Lessons dará continuidade a uma das mais celebradas trajetórias da literatura contemporânea. Nascido na cidade inglesa de Aldershot, em 1948, McEwan despontou em 1975 com a coletânea de contos Primeiro Amor, Últimos Ritos. O Jardim de Cimento, de 1978, foi sua estreia no romance, abrindo uma série de narrativas de suspense com tons góticos que lhe valeram na fase inicial da carreira o apelido de Ian Macabro.

Se Reparação é seu título mais conhecido, a consagração McEwan havia alcançado pouco antes com seu romance anterior, Amsterdam, vencedor do prestigiado Booker Prize em 1998. Aqui, na jornada de dois amigos diante de escolhas decisivas, o autor consolida uma nova marca autoral que vinha lapidando, a fábula moral permeada por dilemas éticos e crítica social. Outros livros importantes para se conhecer a obra de McEwan são O Inocente (1990), Cães Negros (1992), Amor sem Fim (1997), Na Praia (2007) e  Enclausurado (2016).

 

Escritor de cinema

O trabalho de Ian McEwan no audiovisual começou em paralelo com a literatura, em 1976, como roteirista das séries da BBC Second City Firts e Play for Today. Seu primeiro roteiro original de longa-metragem foi The Ploughman's Lunch (1983). Também é autor do roteiro l do suspense O Anjo Malvado (1993), protagonizado pelos então garotos Macaulay Culkin e Elijah Wood.

Além de Desejo e Reparação, McEwan já teve adaptado para o cinema, entre outras obras, Ao Deus Dará (1981), em Uma Estranha Passagem em Veneza (1980), com direção de Paul Schrader; O Inocente (1990), no longa homônimo de 1993 assinado por John Schlesinger; O Jardim de Cimento (1978), no filme de 1993 vencedor do prêmio de melhor direção no Festival de Berlim, para Andrew Birkin; Amor sem Fim (1997), em Amor Obsessivo (2004), de Roger Michell; Na Praia (2007), no longa de 2017 dirigido por Dominic Cooke; e A Balada de Adam Henry (2014), em Um Ato de Esperança (2017), de Richard Eyre.

 

Trecho de um momento emblemático do livro

O que se apresentava ali fazia sentido. Robbie Turner, filho único de uma humilde faxineira, pai desconhecido, Robbie, cujos estudos haviam sido financiados pelo pai de Briony, desde a escola até a universidade, que antes queria ser paisagista e agora queria estudar medicina, tinha ambição e ousadia suficientes para pedir a mão de Cecilia. Fazia muito sentido. Essas violações de fronteiras eram comuns nos romances cotidianos.

Menos compreensível, porém, foi o gesto de Robbie, que agora levantava a mão com autoridade, como se desse uma ordem a que Cecilia não ousaria desobedecer. Era extraordinário ela não poder resistir a ele. Por insistência de Robbie, ela estava tirando as roupas, e muito depressa. Já havia despido a blusa, agora deixava a saia cair no chão e saía de dentro dela, enquanto ele olhava, impaciente, as mãos nos quadris. Que estranho poder ele teria sobre ela. Chantagem? Ameaças? Briony levou as duas mãos ao rosto e afastou-se um pouco da janela. Devia fechar os olhos, pensou, para não ver a vergonha de sua irmã. Mas isso seria impossível, porque mais surpresas estavam acontecendo. Cecilia, felizmente ainda com a roupa de baixo, estava entrando no laguinho, a água até a cintura; estava fechando as narinas com os dedos – e então sumiu. Agora só se via Robbie, e mais as roupas jogadas sobre o cascalho, e, ao longe, o parque silencioso, a serra azul na distância.

A sequência era ilógica – a cena de afogamento, seguida do salvamento, deveria ocorrer antes do pedido de casamento. Foi a última coisa que Briony pensou antes de aceitar que não conseguia compreender e que só lhe restava assistir. Sem que ninguém a visse, do andar de cima, à luz reveladora de um dia de sol, ela estava tendo acesso privilegiado ao comportamento adulto, a ritos e convenções sobre os quais nada sabia, ainda. Sem dúvida, aquilo era o tipo de coisa que acontecia. No momento exato em que a cabeça de sua irmã irrompeu na superfície – graças a Deus! –, Briony pela primeira vez se deu conta, de modo ainda tímido, de que para ela agora não poderia mais haver castelos nem princesas como nas histórias de fada, e sim a estranheza do aqui e agora, o que se passava entre as pessoas, as pessoas comuns que ela conhecia, e o poder que uma tinha sobre a outra, e como era fácil entender tudo errado, completamente errado.

 

DICAS DO LING

O filme Desejo e Reparação pode ser assistido nas plataformas de streaming Amazon Prime Video e Apple+.

A comparação entre o livro e o filme é tema do podcast 30:min – Livros e Literatura. Ouça aqui.

Ian McEwan esteve em Porto Alegre em 2016, como um dos convidados do projeto Fronteiras do Pensamento. Veja um breve trecho de sua participação. Aqui, ele faz uma síntese de carreira.

 

Referências

FOLHA DE S. PAULO. McEwan faz questionamento sobre literatura

Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2004200216.htm

REVISTA BULA. Reparação, de Ian McEwan: um livro sobre a complexidade da vida, amadurecimento e perda da inocência

Disponível em https://www.revistabula.com/38084-reparacao-de-ian-mcewan-um-livro-sobre-a-complexidade-da-vida-amadurecimento-e-perda-da-inocencia/

ZERO HORA. Ian McEwan: "O escritor é uma espécie de espião"

Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2016/10/ian-mcewan-o-escritor-e-uma-especie-de-espiao-8048189.html