O Oriente Médio pelos olhos do jornalista Diogo Bercito
Especialista em Oriente Médio, Diogo Rodrigues Bercito, 36 anos, é interessado no tema desde antes do diploma de jornalista pela Casper Líbero. Em 2011, já estava posicionado na Folha de São Paulo como especialista e, tendo conhecimentos de hebraico e árabe, aos 24 anos se tornou correspondente internacional em Jerusalém e, a seguir, em Madri. Ao ser contemplado com bolsa do programa Jornalista de Visão em 2016, aprofundou seus conhecimentos no tema com um mestrado em Estudos Árabes, na Universidade de Georgetown, a mesma onde agora está na reta final do doutorado em História do Oriente Médio. Hoje, trilha uma carreira multidisciplinar: é jornalista, autor dos livros “Vou Sumir Quando a Vela Se Apagar” e “Brimos”, historiador e acadêmico. Sua trajetória inclui ainda trabalhos como freelancer em veículos como o Daily Star (Líbano) e Haaretz (Israel) e textos para HQs “Remy” e “Rasga-Mortalhas” Em bate-papo com o blog, ele compartilha momentos marcantes da carreira e fala sobre a experiência de exercer o jornalismo em territórios conflagrados.
De onde veio o interesse pelo Oriente Médio?
Começou quando eu era bem jovem, talvez adolescente, eu lia muito sobre a região, via o noticiário. E, quando eu tinha 18-19 anos, já trabalhando na Folha, fiz um mochilão. Foi minha primeira viagem sozinho no exterior, lugares com outras línguas, culturas, tradições. Eu voltei, estudei um pouco de hebraico, estudei árabe. Me formei em Jornalismo na Casper Líbero, aí entrei em Letras na USP em 2009 - 2010, fiz a habilitação em árabe, e nesse meio tempo voltei para o Oriente Médio, dessa vez Síria, Líbano e Turquia, um pouco antes de começar a guerra civil na Síria. E fui me posicionando no jornal como uma pessoa que era especialista nesse tema. Quando iniciou a Primavera Árabe, em 2011, passei a produzir mais sobre isso. Em 2013, a Folha trocou o correspondente em Jerusalém e me convidaram para assumir o posto, onde fiquei quase dois anos. Eu tinha 23, 24 anos, foi uma aposta bastante arriscada e a qual eu sou eternamente grato. De Jerusalém, fui transferido para Madri, fiquei quatro anos lá, sendo dois como correspondente e outro período como freelancer fixo da Folha enquanto fazia o mestrado. Também passei alguns meses no Egito, no Líbano e continuei colaborando para o jornal de lá.
Qual é a primeira lembrança de querer entender melhor esse mundo, a língua?
Minha melhor amiga, quando criança, era filha de libaneses. Ela tentava me ensinar árabe, tenho até hoje os cadernos. Mais tarde, quando eu fui para Síria, em 2010, fiquei sabendo que a minha avó paterna era, supostamente, filha de um imigrante sírio. Fiz um teste de DNA, deu que tenho 10% de genes sírio-libaneses, da região de Damasco, Beirute. Mas, no final das contas, acho que é um interesse pessoal, estive lá, conheci a região, acho que é uma coisa mais direta.
De toda a região do Oriente Médio, qual é a mais especial para você?
São muito diferentes. Tenho um carinho especial pelo Líbano, pelo interior do país em especial, mais do que Beirute. Eu gosto muito das montanhas libanesas, das aldeias, vilarejos. O Egito também é, de uma maneira diferente, um lugar especial pra mim, tem essa coisa faraônica, de antiguidade. Eu estive no Iraque, no Iêmen, na Tunísia. Passei algum tempo no Marrocos, estudando árabe também. Tenho amigos e memórias em todos esses lugares, então é difícil escolher um.
Como você garante minimamente a sua segurança em um lugar conflagrado?
A gente tem alguma estrutura. Eu tinha um colete a prova de balas, que era do jornal, eu tinha um capacete, uma máscara de gás. Eu usei, mas nunca precisei, teoricamente. A Folha também me pagou um treinamento de sobrevivência dado pelo exército do Reino Unido para jornalistas que cobrem situações de guerra, foi desde os primeiros socorros a como lidar com sequestradores. Coisas básicas que ajudam muito, procurar uma rota de fuga…e que faço até hoje. A gente, brasileiro, tem uma estrutura muito menor. Eu lembro que pessoas da CNN, por exemplo, que eu conhecia em Jerusalém, tinham helicópteros prontos para evacuá-los, iam acompanhados de pessoas armadas.
Qual foi a situação mais difícil que você já viveu como jornalista?
Foram muitos. Número um, acho que Gaza, em 2014, fiquei umas duas semanas, as fronteiras fecharam e a gente ficou preso lá dentro. A nossa saída foi negociada com o governo de Israel, e fomos evacuados e, enquanto nosso ônibus saia, passavam tanques de guerra e atiravam, foi uma cena de filme, realmente. Isso em termos de segurança. Em termos emocionais, no Egito eu cobri um massacre, em 2013, o regime egípcio matou uma centena de pessoas que estavam numa mesquita protestando. Eu fui no dia seguinte e, quando chego nesta mesquita, são 300 corpos espalhados no chão, num calor de 50 graus, o cheiro dos cadáveres. Aquilo, em termos humanos, foi olhar no fundo do abismo.
E a melhor coisa?
As viagens foram muito especiais, a viagem para o Iêmen em particular. O Iêmen é um país muito difícil de entrar, por “n” razões, é um país que tem uma cultura bastante própria, uma arquitetura bastante própria. Visitei as ruínas da Babilônia (Iraque) para fazer uma matéria pra Folha. Na Síria, também vi essas regiões históricas, no Iraque fiz um trecho pequeno de uma peregrinação xiita. São coisas que eu nunca teria tido a oportunidade de fazer se não fosse jornalista.
Por que você acha que conflitos de décadas no Oriente Médio mobilizam e são mais sentidos no mundo do que conflitos na África?
Tem uma questão simbólica muito forte, a ideia da Terra Santa, a ideia de que foi ali que Jesus nasceu, enfim, são cenários que a gente cresce lendo, em um país católico como o Brasil. Todo mundo sabe a história da crucificação de Jesus, o Monte das Oliveiras, Santo Sepulcro, Galileia... Isso mobiliza há muito tempo a imaginação das pessoas. O livro “Orientalismo”, de 1978, fala disso: foram gerações de intelectuais escrevendo sobre o Oriente, a gente herda essas imagens e ideias. É um lugar que é muito familiar para nós, de uma maneira que a África e a Ásia não são.
Desde que fui pra Jerusalém, um dos meus chefes me disse: Diogo, você vai para um lugar em que as pessoas vão ler os seus textos com lupa, você vai precisar medir cada palavra que você usar. Eu continuo fazendo isso, mesmo quando eu gravo, eu penso em cada termo, cada maneira que vou falar as coisas, porque essas palavras têm muito poder hoje. Qualquer coisa que a gente diz sobre árabes ou judeus pode ser munição para um ataque islamofóbico ou antissemita no futuro, temos uma responsabilidade social muito grande.
Você consegue enxergar uma solução para o conflito no Oriente Médio?
Hoje em dia não. Comparando 2013 com o ano passado, 10 anos, a gente está numa situação muito pior. Estamos mais distantes da paz de uma maneira quase insolucionável. Sou bastante pessimista quanto a isso.
Você foi para o mestrado em Georgetown em 2018 (com bolsa Jornalista de Visão). A partir daí que escreveu Brimos, seu primeiro livro?
Sim, eu já tinha começado, mas durante o mestrado eu continuei escrevendo. Logo que eu cheguei, fui contratado como assistente de pesquisa de uma professora, uma coisa bem comum aqui. Ela estava com um projeto de estudar comunidades árabes-cristãs fora do Oriente Médio, e ela me pediu para focar nas comunidades na América Latina. Usei muito desse material no livro, então acho que o livro alimentou o mestrado e o mestrado alimentou o livro, e foi essa experiência que me fez decidir fazer um doutorado em História do Oriente Médio o, que é o que eu estou fazendo hoje, quando terminar serei um historiador na área. Que também é essencial para o meu trabalho no jornalismo, estou há 6 anos nos Estados Unidos, sempre colaborando com a Folha.
Você é hoje mais historiador ou mais jornalista?
Meio a meio. Eu escrevo bastante para a revista 451, de literatura, resenho bastante literatura árabe, literatura hebraica, que também tem a ver com experiência e estudo, acho que são coisas diretamente ligadas ao mestrado e doutorado. Escrevo para a Piauí às vezes. No início da guerra em Gaza, fiz comentários para a Globo, Band, SBT. Eu tenho tentado manter as duas coisas, acho que são duas necessidades que eu tenho, de contar a história imediata e também contar com mais profundidade, e foi também o porquê eu decidi concorrer à bolsa e vir morar aqui, essa necessidade de entender melhor sobre as coisas as quais eu escrevia.
Quais são seus planos, terminando o doutorado? Pretende dar aula?
Continuar escrevendo, certamente, tanto jornais quanto livros. Estou escrevendo outro livro que ainda não foi anunciado, tem um segundo romance e um segundo livro de história. Quero seguir no jornal, estou na Folha há quase vinte anos. Mas não descarto trabalhar mais de perto com a academia, dar aula na universidade, acho que é um papel social importante também, nesse projeto maior de disseminar conhecimento sobre a região para que a gente saia um pouco do lugar comum. Ou dar aula até de maneiras mais informais, cursos, trabalhar em museus, acho que são maneiras de contribuir, devolver um pouco esse conhecimento que eu tive o privilégio de adquirir.
Qual o legado que você pretende deixar como jornalista?
Acho que a humanização do outro, sendo bem ambicioso. A humanização dos povos árabes, de cultura islâmica. Tenho muita preocupação em combater estereótipos, talvez seja o grande papel social que eu tenho, sempre me preocupo em explicar e mostrar a complexidade dessas sociedades.