Educação abrindo caminhos: a dedicação de Kassiopeya Costa
Um “teste-surpresa” de matemática na escola mudou a vida de Kassiopeya Costa. Qualificada para a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, recebeu bolsa da ONG Primeira Chance para estudar o Ensino Médio em uma escola particular. O convite para conhecer a sede da faculdade Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) em São Paulo fez brilhar os olhos e trouxe ainda mais motivação.
Aprovada no disputado vestibular, a jovem saiu de Fortaleza em 2014 para cursar Administração de Empresas, com bolsa da instituição de ensino e apoio do Programa VOAR, do Instituto Ling. Agora aos 26 anos, de volta ao Nordeste, quer retribuir as oportunidades recebidas e trabalha para que mais jovens como ela tenham seus futuros transformados pelo acesso à educação.
Nascida no Ceará, Kassiopeya ganhou seu nome pela admiração do pai por mitologia grega. Primogênita dos cinco irmãos, é filha de policial militar; a mãe cozinhava para fora, para complementar a renda da família. A jovem estudava em colégio público em Fortaleza e sempre gostou de matemática, tirando boasnotas “sem ser CDF”, como destaca. Até o dia descrito como o divisor de águas em sua trajetória.
No último período antes do recreio, a turma do sexto ano do Ensino Fundamental recebeu uma prova de matemática para responder, sem valer nota. “A turma ficou revoltada”, recorda Kassi, lembrando as combinações com a professora da época. Bastava ficar por 10 minutos mínimos no teste, depois quem quisesse poderia ir mais cedo para o intervalo.
Por sorte, Kassiopeya curtiu a elaboração dos desafios propostos e ficou até o fim. Como resultado, passou para a segunda fase e só então vislumbrou o propósito da atividade. Era um teste de conhecimentos em matemática, ferramenta integrante da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), projeto nacional dirigido às escolas públicas e privadas brasileiras.
A aluna recebeu uma medalha de bronze na etapa seguinte e ganhou um curso de aprofundamento em Matemática, além de uma bolsa de R$ 100 por mês. Aos sábados, outros estudantes como ela, vindos de todas as partes do Ceará, tinham aulas e se preparavam para as próximas Olimpíadas. Mais medalhas vieram, Kassi passou para o Ensino Médio e uma oportunidade incrível surgiu.
Um coordenador do prestigiado Colégio Ari de Sá Cavalcante telefonou contando que uma nova ONG estava procurando medalhistas como ela para oferecer bolsas de estudo. Tratava-se do primeiro processo seletivo oficial do Primeira Chance, cofundada pelo administrador de empresas Cassius Leal, ex-bolsista do Instituto Ling, cujo propósito é apoiar jovens com alto potencial acadêmico.
— Parece que caiu do céu essa ligação! Na verdade casou com um plano que eu já tinha. Havia decidido que seria engenheira, pensando em seguir carreira militar, como meu pai. Sabia que era um vestibular concorridíssimo, então quando saísse do meu colégio tentaria uma bolsa para fazer cursinho justamente no Ari de Sá — recorda a jovem, que passou no processo seletivo da ONG quando tinha 14 para 15 anos. Então entendi a dimensão do que aquilo significava.
O que ninguém contou é que ganhar a bolsa seria a parte mais “fácil”, nas palavras de Kassi. Quando as aulas do novo colégio começaram é que vieram os grandes aprendizados.
— Egressa de uma escola pública onde para ser a melhor aluna da sala não era preciso estudar muito: é aquela história do talento versus esforço. Então na primeira prova eu tirei 3.8, uma nota da qual lembro até hoje, pois foi chocante. Tive um sentimento muito ruim e medo de perder a bolsa.
Mas uma das características mais bacanas do projeto Primeira Chance é disponibilizar mentorias aos bolsistas, ou seja, a estudante tinha uma pessoa experiente com quem conversar e tirar dúvidas. Coube a ele orientar a garota para não desanimar diante do obstáculo inicial. “Esse 3.8 não te define: o que te define é o que você fará com ele”, foi a frase marcante da conversa. E então dali para frente tudo mudou.
— Entendi que o nível de exigência das escolas é muito diferente. Eu nunca mais quis me sentir a melhor aluna da turma. Depois desta experiência, entendi que sempre haveria mais a aprender. Não quero ser a mais inteligente da sala, e sim a pessoa que mais está aprendendo.
Outro aprendizado importante, recorda Kassiopeya, era contar muito com a ajuda dos colegas. Até o final do Ensino Médio, a aluna passava o dia inteiro no colégio: de manhã nas aulas e à tarde na biblioteca. A descoberta de amizades com o mesmo ritmo de estudos e a dedicação redobrada fizeram com que a nota baixa rapidamente fosse revertida.
Hora do vestibular chegando, inscrição feita para todas as principais universidades, enquanto persistia o desejo de seguir a carreira militar, como o pai. O mentor da ONG trazia várias informações de mercado e ajudava a ampliar a visão, mostrando outras possibilidades, . conversas para “sair da bolha”, afirma Kassi. No meio do caminho, a faculdade Insper convidou alunos a irem a São Paulo conhecer a instituição, pois dispunham de bolsas de estudo para contemplar outras regiões do país. E assim a jovem passou no disputado vestibular do Insper, determinada a cursar Administração de Empresas. Faltava convencer o pai de que aquela era a vocação real da filha.
— A primeira reação dele foi: de jeito nenhum! Mas então ele entendeu que era seguro e que era uma oportunidade única.
Mudança feita, Kassi recebia bolsa integral. O ano era 2014 e a jovem ficaria por pelo menos quatro anos em São Paulo cursando a graduação. Por meio do então recém criado Programa Voar, do Instituto Ling em parceria com a ONG Primeira Chance, obteve mais suporte, tanto para suas atividades acadêmicas como para a vida pessoal. O Voar disponibilizou um notebook para a estudante, bem como passagens aéreas para que pudesse retornar ao Ceará para passar férias com a família.
— Para quem olhar de fora, para entender a importância deste apoio: meus colegas de turma eram filhos de famílias com muitas condições financeiras. Então não adianta apenas dar oportunidades iguais, pois as pessoas vêm de trajetórias muito diferentes. Você precisa promover a equidade, dar condições iguais para que as pessoas consigam explorar suas potencialidades. O Ling fez isso por nós, conta Kassiopeya, referindo a outros bolsistas também.
A experiência universitária foi aproveitada integralmente, não só na parte dos estudos, mas também nas atividades fora de sala de aula. Kassi se engajou em cursos extracurriculares, em pautas do diretório acadêmico, na Liga de Mercado Financeiro do Insper, fez estágios e monitorias.
Já no primeiro semestre, pela facilidade na disciplina de Cálculo, começou a dar aulas particulares para alguns colegas que vinham tirar dúvidas e elogiavam sua didática. Assim começou a juntar uma verba para realizar outro sonho: um mochilão internacional. Kassi e outros bolsistas ainda foram ciceroneados por uma parceira do Primeira Chance, radicada na Espanha, que abriu a casa para receber os estudantes, saindo do país pela primeira vez.
— Foram 40 dias inesquecíveis, uma vivência de ver como é o mundo, uma ampliação total dos horizontes. Sair do Ceará para São Paulo já havia sido uma expansão da bolha, ir para a Europa foi ainda mais incrível. Entendi que a nossa formação profissional e pessoal deve ser mais holística do que a gente aprende na sala de aula e nos livros.
No último ano de Administração de Empresas, na hora do estágio, a universitária ainda acreditava que trabalharia com consultoria. Mas ao longo da graduação havia começado a fazer trabalho social em SP. A visita a uma ONG na favela de Paraisópolis foi marcante e definitiva para os novos rumos.
— Estava passando pelo bairro Morumbi, vi a imensidão que era e aquilo me atingiu de jeito. Não que eu desconhecesse a desigualdade social do Brasil, mas foi quando percebi que isso também estava na minha trajetória de vida. Quando meu pai me levava de moto da periferia até o bairro mais nobre de Fortaleza, eu já ia no banco do carona percebendo a diferença de realidade da minha vizinhança e a dos prédios à beira-mar. Mas eu era criança, a percepção era diferente — conta.
O trabalho social a deixou por muitas semanas em reflexão. Decidiu que sua carreira não seria sobre ganhar dinheiro, algo que mudaria sua realidade e a da família. Surgiu o desejo de construir algo que mudasse a realidade de muitas outras pessoas, o verdadeiro significado de impacto positivo. E trabalhar com educação parecia o caminho mais lógico para transformar este cenário.
— Quando eu olhava para trás e via de onde surgiram as oportunidades que mudaram a minha vida, eu sempre voltava para aquele momento da prova de matemática. Sou muito grata a todas as oportunidades que tive, sei que sou merecedora, mas sei também que há milhões de jovens que não conseguem ter acesso a essas mesmas oportunidades.
Ao concluir a faculdade, Kassi seguiu em São Paulo e passou a trabalhar na Arco Educação, sistema de ensino do colégio em que tinha estudado no Ensino Médio. Está na empresa há 6 anos, mas desde que entrou na empresa passou por vários cargos. No início atuou como analista de BI e de dados e Inteligência de Negócios. Depois, queria atuar mais próximo das pontas, onde as decisões estão sendo tomadas na educação, de modo que começou a fazer transição de carreira para esta área.
— Se eu acredito que a educação no Brasil tem que ser transformada para melhor, eu quero estar construindo isso, e não apenas por trás dos números. E então voltei a estudar muito, como por exemplo sobre formação de professores e uma certificação de gerente de produtos digitais focada em educação.
Uma situação familiar, quando a irmã mais nova ainda precisava de cuidados e os avós já estavam mais frágeis, trouxe Kassiopeya de volta a Fortaleza, seguindo trabalhando na Arco. Um dos trabalhos que mais trouxe realizações foi na pandemia. Muitas escolas ficaram sem acesso às aulas, então por meio ano a administradora coordenou a transmissão de conteúdos da Arco ao vivo pelo YouTube, deixando aberto para alunos de escolas públicas também.
Além do cargo atual de head de inovação, ainda colabora pontualmente com a Associação Cactus, organização fundada por outro bolsista que também foi do Programa Voar, Jefferson Vianna. Quando a ONG começou a ser estruturada, Kassi abraçou o trabalho voluntário com o amigo para criar as iniciativas educacionais do projeto. O objetivo é preparar alunos de Ensino Fundamental em cidades do Interior nordestino. Por meio de parcerias com secretarias municipais de Educação, são oferecidas aulas de matemática em mais de 100 cidades. Um dos resultados mais expressivos da Cactus é a realização da Maratona Tech, mesma lógica de competição das Olimpíadas de Matemática, mas em carreiras de tecnologia: foram mais de 600 mil alunos inscritos no Brasil todo.
— É uma maneira de tentar contribuir para que mais pessoas tenham a oportunidade que tive, democratizando acesso, para que o aluno não precise ter “sorte” nesse primeiro empurrãozinho, e sim equidade. Nosso sistema educacional ainda é muito excludente e deixa muita gente pra trás — analisa. — Minha dica para quem teve oportunidades como a minha é olhar para os lados e pensar em como você também pode ser um agente de mudanças para melhorar a vida das pessoas ao seu redor — conclui.
01.12.2023