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A burguesia francesa exposta em Ligações Perigosas

A obra escolhida desta edição é o romance de Pierre Choderlos de Laclos, Ligações perigosas, considerado um dos clássicos imortais da literatura que abalou as estruturas da sociedade burguesa francesa quando lançado em 1782, ao expor a futilidade e a libertinagem da elite do país em um contexto pré-revolução francesa, além de tensionar os papéis de gênero ao falar de desejo e poder. A obra foi proibida diversas vezes por seu conteúdo tido como transgressor, capaz de despertar o interesse mesmo dos mais puritanos. Na adaptação realizada para o cinema em 1988, pelo diretor Stephen Frears, somos levados a invadir a vida dos personagens para além da troca de correspondências desta obra formada por muitas vozes.

  

Acaso me tivesse visto, porém dispondo dos fatos e das opiniões, fazer desses homens tão temíveis o joguete de meus caprichos ou fantasias; tirar de uns a vontade de prejudicar-me, de outros a capacidade para tanto;..., minha reputação conservou-se pura, não deve você concluir que, nascida para vingar meu sexo e dominar o seu, eu soube criar recursos de mim mesma ignorados? Ah, guarde seus conselhos e receios para essas mulheres delirantes, que se dizem mulheres de sentimentos, cuja imaginação exaltada inclina a pensar que a natureza lhes pôs os sentidos na cabeça; que, nunca tendo refletido, confundem o amor com o amante;..., mas o que tenho eu em comum com essas mulheres irrefletidas? Quando foi que me viu apartar-me das regras que impus e faltar a meus princípios? Digo meus princípios, e o faço de propósito, pois não são, como os das outras mulheres, nascidos do acaso, aceitos sem reparo e seguidos por hábito: são fruto de minhas profundas reflexões; eu os criei, e posso dizer que sigo minha obra.

(Trecho da carta nº 81, da Marquesa de Merteuil para o Visconde de Valmont.

 Les liaisons dangereuses, Laclos, 1782).

 

A OBRA

O romance Ligações perigosas é composto por 175 cartas trocadas entre um pequeno grupo da alta burguesia francesa do século XVIII, tendo como figuras centrais da trama a Marquesa de Merteuil, vivida no cinema por Glenn Close, e o Visconde de Valmont, interpretado por John Malkovich. A marquesa pede ajuda do visconde, seu ex-amante, para executar um plano de vingança que consiste nele seduzir e iniciar sexualmente a jovem Cécile de Volanges (representada pela atriz Uma Thurman), filha de sua prima, a Marquesa de Volanges. Cécile foi prometida em casamento ao Conde Gercourt, homem que foi amante de Merteuil e despertou sua fúria ao abandoná-la. A relação da marquesa com o visconde é uma espécie de jogo onde ambos compartilham suas conquistas sexuais e seus feitos de manipulação através da troca de correspondências, onde se deliciam com suas intrigas e armações.

Valmont é visto na sociedade como um grande sedutor, e vê a vingança da marquesa como um desafio muito fácil para ele, não aceitando no primeiro momento pois já tinha outra conquista em mente, estava obcecado pela Presidente de Tourvel, interpretada por Michelle Pfeiffer, uma mulher casada, recatada e de grande estima social. Ele aceita o desafio da Marquesa de Merteuil após descobrir que a Marquesa de Volanges estava escrevendo cartas difamatórias sobre ele para a Presidente de Tourvel. As cartas são tidas na história como a comprovação das conquistas de Valmont para que ele receba a recompensa, uma noite de amor com Merteuil caso seduzisse Cécile de Volanges e a Presidente de Tourvel.

A Marquesa de Merteuil é a personagem mais interessante do romance, pois representa uma mulher destemida que desde de muito jovem fez a sua leitura do que a sociedade esperava dela enquanto alguém do gênero feminino, mantendo uma imagem de acordo com o esperado, mas não reprimindo seus desejos de sedução e poder em sua vida privada. Merteuil e Valmont são pessoas com comportamentos muito parecidos, mas que devido ao peso de ser mulher não é permitido que a marquesa se comporte publicamente como Valmont e mantenha o respeito da sociedade.  

A versão cinematográfica, de 1988, foi realizada a partir da adaptação da obra para o teatro, feita por Christopher Hampton. O cinema e o teatro nos levam para a dimensão dos acontecimentos para além das mensagens trocadas nas cartas, aproximando o espectador de um formato mais formal para contar a história de Laclos. No livro, o escritor opta por escrever a obra omitindo sua presença, deixando o leitor realmente com a sensação de estar invadindo a correspondência alheia, pois cada capítulo é uma carta direcionada de uma pessoa para a outra, e não uma conexão textual de um narrador entre os acontecimentos descritos nas cartas. Dessa forma, o romance traz muitas vozes narrativas, causando a sensação de que as partes são escritas por diferentes pessoas, deixando a presença do autor oculta no texto.

 

O AUTOR

Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos deixou sua marca na literatura com a brilhante obra Les liaisons dangereuses, seu primeiro e único romance. Nascido em 1741, na cidade de Amiens, na França, numa família abastada, mas sem influência social. Desde os 18 anos, Laclos dedicou-se à carreira no exército, onde permaneceu por cerca de 20 anos. A escrita era algo que realizava em seu tempo livre fazendo pequenos poemas, dos quais publicou alguns, mas sem grande repercussão. Nos anos que serviu ao exército francês, ele viveu em diversas cidades e assumiu o posto de comandante, mesmo nunca tendo pisado no campo de batalha.

Em uma de suas viagens, no ano de 1779, foi mandado para a ilha de Aix, ao largo da cidade de La Rochelle, e em sua permanência na ilha escreveu o romance Les liaisons dangereuses, lançado em 1782. O livro deu o que falar causando grande repercussão e rapidamente teve suas cópias esgotadas, recebendo diversas reimpressões. Fora do exército, Laclos ingressou na política e chegou a ser preso durante o chamado Período do Terror, fase da Revolução Francesa sobre o domínio dos Jacobinos. Retornou ao exército em 1800 sob o comando de Napoleão. François Choderlos de Laclos faleceu em 1803, deixando como legado as imortais cartas trocadas por Marquesa de Merteuil e Visconde de Valmont que chocaram a sociedade do século XVIII.

 

CURIOSIDADES

Você sabia que a obra Les liaisons dangereuses já foi adaptada para diversos formatos? Em 1974 e 1980 foi montada como ópera pelo compositor Claude Prey. Na televisão, recebeu diversas versões como seriado. Foi adaptada para o teatro por Heiner Mueller, em 1984, e por Christopher Hampton, em 1988.

O filme Ligações Perigosas (1988) foi o ganhador do Oscar em 1989, nas categorias de Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino e Melhor Direção de Artes, além disso, recebeu o Prêmio César de Melhor Filme Estrangeiro, em 1990.

O diretor francês, Roger Vadim, realizou em 1959 uma adaptação da obra de François Choderlos de Laclos, trazendo para um contexto da burguesia do século XX. O filme foi estrelado pela grande Jeanne Moreau e pode ser assistido no YouTube!

A primeira tradução de Les liaisons dangereuses (As relações Perigosas), publicada no Brasil em 1947, foi feita pelo grande poeta Carlos Drummond de Andrade.

 

DICAS DO LING

O filme Ligações Perigosas (1988) está disponível para locação online nas plataformas: Looke  e Apple iTunes.

Você também pode conferir a adaptação brasileira realizada pela Globo, em 2016, no formato de minissérie, que recria a história no Brasil dos anos 20. Disponível no Globo Play.

Conheça a filmografia completa de Stephen Frears, além de Ligações Perigosas (1988) ele dirigiu diversos filmes aclamados pelo público e pela crítica como Alta Fidelidade (2000), Coisas Belas e Sujas (2002), A Rainha (2006), Florence - Quem é essa mulher? (2016) e Victoria e Abdul (2017). 

 

REFERÊNCIAS

BULHÕES, Marcelo. Les liaisons dangereuses na tela: ligações “perigosas” entre cinema e literatura. Revista Alceu Puc-Rio, 2012. Disponível em: http://revistaalceu-acervo.com.puc-rio.br/media/Artigo%207_24.pdf

Les liaisons dangereuses. Tradução de Dorothée de Bruchard.

LACLOS, Choderlos de. As relações perigosas. Tradução de Dorothée de Bruchard. Penguin Companhia, 2012. Disponível em: https://lelivros.love/book/baixar-livro-as-relacoes-perigosas-choderlos-de-laclos-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online/#tab-additional_information

SILVA, Mayara Isis. Os sentidos do figurino na construção dos personagens em Ligações Perigosas. Orientadora: Daniela Bracchi. 2016. 101 f. Monografia - Bacharelado em Design, UFPE, Pernambuco.  2016. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/33933/1/SILVA%2C%20Mayara%20Isis.pdf