Um mestre da ficção
Se ainda vivo, José Rubem Fonseca teria completando 100 anos em abril. Morreu em 2020. Era o último ficcionista verdadeiramente extraordinário dos tantos que afloraram na literatura brasileira durante o século XX: a exemplo de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Erico, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, e outros poucos. Sua obra não apenas está traduzida em inúmeros idiomas, mas foi reconhecida e celebrada por autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Tomás Eloy Martínez. No primeiro semestre de 2019, em mesa que organizei, no Teatro Renascença, o cubano Leonardo Padura reconheceu o papel decisivo de Fonseca em suas próprias formulações romanescas.
O escritor, que se definia com um “mineiro carioca” (pois viveu em Minas até os 8 anos), irrompeu sem muita repercussão com um livro de contos Os prisioneiros, em 1963. Eram relatos inusuais, seja pela temática, seja pela linguagem coloquial ou ainda pelos procedimentos técnicos de que se valia. Lembro de tê-los lido então, sem compreender a amplitude que representavam no contexto daquela época onde a literatura inclinava-se para um realismo mais conservador na forma (exceptuando-se as obras de Guimarães Rosa e Clarice, ambos ainda submetidas a ataques de muito críticos literários e certa incompreensão dos leitores).
Porém, quando a já desaparecida editora Olivé, lançou A coleira do cão, em 1965, e Lúcia McCartney em 1969, tornaram-se visíveis as marcas inovadoras de um conjunto de relatos – que como nenhum outro – captava a nova face urbana de um país cujas transformações sociais e morais ocorriam em uma velocidade feita de assombros, caos ético e novas concepções de vida. Esse lado documental – digamos – da implosão de um país agrário, conservador e patriarcal e do surgimento de uma ordem relativamente anárquica de costumes e visões de mundo impregnaria deste então os seus contos e dominaria a imagem literária do escritor.
Em 1975, veio à luz Feliz Ano Novo, logo censurado pelo regime militar por conteúdo “obsceno e pornográfico”, embora talvez as razões do censor fossem mais profundas: no momento em que a propaganda oficialista sublinhava o fato do país ser “uma ilha de tranquilidade” em meio a uma realidade internacional convulsa, Rubem Fonseca registrava – ou melhor – antecipava (com as antenas prospectivas dos artistas iluminados e sua curta experiência anterior como comissário de polícia) o terrível ovo da serpente que se espalhava pelas ruas das metrópoles brasileiras: uma violência ilimitada, sangrenta, amoral e, hoje, fora de controle. O ingresso das drogas no cotidiano citadino na década de 80 aumentou geometricamente a criminalidade, fazendo com os brasileiros se dessem conta do inferno onde viviam. Neste momento, Rubem Fonseca se tornou o escritor número um do país.
Não só descrevera o terror, como o antecipara. O vigoroso realismo com que desvelou o mundo urbano da nação é uma coluna significativa de seu projeto estético. Infelizmente os elementos histórico-sociais que abundam em seus contos e romances levaram muitos críticos a verem o ficcionista como apenas um retratista de nossas adversidades. Suas criações passaram a ser analisadas como depoimentos brutalistas acerca da crueldade do capitalismo cruel e até mesmo como lições sobre a luta de classes. Transformaram, assim, a complexidade das ficções supremas em apêndice pedagógico da conscientização política e de banais discursos ideológicos.
A BANALIDADE DO MAL
Na verdade, a pedra angular dos contos e romances de Rubem Fonseca talvez seja a natureza incognoscível e reiterada da perversidade humana. O entorno social e cultural lhe estabelece apenas alguns limites, mas também a precipita Desde o conto Fevereiro ou março, que abre o seu primeiro livro até os últimos relatos (Carne crua, 2018), transgressões candentes e desprezo pela ordem estiveram no centro dos atos dos protagonistas. Esses infratores procedem de todas as classes, das elevadas às subalternas: homens e mulheres, velhos e adolescentes, gente bizarra e gente comum; todos arrastados por paixões obscenas, exasperantes, entre as quais impera o irrefreável desejo de submissão ou de destruição do outro. São seres constantemente atraídos pela irresistível potência do Mal, que os seduz, os escraviza e lhes subtrai a possibilidade da compaixão.
Ao executar ações desorbitadas, demonstram sangue frio, quando não êxtase, e uma consciência moral entorpecida, infensa a remorsos ou culpas. Penetrar nesta ínfera realidade significa atingir uma plenitude subterrânea de volúpia e liberdade que não admite renúncia. Para Rubem Fonseca, a alma humana carrega desde sempre forças demoníacas, tendências abomináveis, feitas de compulsões, desejos surdos, ameaçadores que, sob determinadas circunstâncias, afloram em descontrolado turbilhão de fúria e sangue. Porém, nas infinitas narrativas em primeira pessoa, de que se vale em busca de autenticidade e persuasão, não há respostas taxativas para o comportamento perverso, sua decifração é normalmente suprimida ou apenas aludida.
A aproximação das raízes obscuras do Mal produz textos de inquietante beleza, muitos deles ligados a obsessões sexuais. As pulsões de morte se chocam com as pulsões de vida e as dominam, quando não se misturam, erotismo e morte confundidos em uma região de trevas que evoca o inferno. No campo verbal, o estilo despojado e a dicção neutra de grande parte dos narradores sublinham a frequente indiferença dos que cometem delitos e conferem aos textos uma atmosfera atordoante pela banalidade com que o desumano irrompe e triunfa.
EM SÍNTESE
A rigor, a centralidade da obra de Rubem Fonseca provém de várias camadas indissociáveis: a poliédrica apreensão da experiência humana na modernidade brasileira; a tentativa de decifração das inefáveis raízes do Mal; as respostas possíveis diante da morte dos deuses e de todos os absolutos que condenam os indivíduos, tanto à solidão quanto ao desamparo; e as formas experimentais de que se valeu para exprimir sua concepção de absurdo da existência. Este último aspecto estético reside no caráter inventivo da articulação e do estilo de seus contos e romances. Ou seja, em sua vontade de forma, de expressão original, persuasiva e densamente elaborada. Uma vontade de forma sem a qual não existe literatura.
A par do seu gosto por pontos cegos que criam polissemia (hoje elementos quase obrigatórios na ficção), Rubem Fonseca operou outra revolução, a do campo verbal, inventando um estilo que influenciou visceralmente dezenas de escritores surgidos no país, a partir dos anos 70. Construiu o referido estilo mediante um formidável poder de síntese, capaz de pôr em pé, com poucas frases, um espaço físico, um ambiente social e personalidades vívidas. Sua linguagem despudorada, assentada em diálogos breves e essenciais, tornou-se uma das mais perfeitas simulações de oralidade já ocorrida entre nós.
A fala urbana brasileira encontrou nele um perfeito tradutor, dúctil e criativo. Soube captar o timbre natural das vozes que ecoam nas cidades, fosse no vocabulário e na dicção, fosse nas inflexões e na adequação à anatomia sociocultural de cada narrador. O conhecimento incomum dos mais variados tipos humanos e os ouvidos sensíveis escancaram-lhe as portas de um paraíso inacessível à maioria dos ficcionistas: em sua obra, o delegado de polícia fala como delegado de polícia, o halterofilista como halterofilista, a prostituta como prostituta, e assim por diante. A triunfante postulação desse estilo pessoalíssimo, de plena fluência expositiva, esteve alicerçada na transfiguração da oralidade e, obviamente, na luta pelo mot juste e no esforço de depuração de tudo aquilo que fosse supérfluo na escrita.
Sua obra, mesmo carregada de ceticismo sobre a humanidade, possivelmente afirmará o triunfo da arte sobre a desintegradora passagem do tempo.
Por Sergius Gonzaga
Publicado no Correio do Povo
em 11/10/2025.