Enxergando o direito como negócio: Ana Mercereau e o mundo da arbitragem internacional
A formação no exterior ajudou Ana Gerdau de Borja Mercereau a entrar de cabeça na área do direito que lhe interessava desde a graduação, mas que ainda era novidade no Brasil: a arbitragem. Da UFRGS, partiu para um LLM em Cambridge, que emendou com um doutorado na universidade inglesa. Hoje, já são 16 anos de carreira na arbitragem, setor em que Ana aprendeu a unir advocacia e negócios, trazendo um modo de pensar empreendedor para o direito. Neste ano, embarcou em mais um desafio ao abrir seu próprio escritório em Paris, o Citadelle Disputes.

A mais velha de seis irmãos, Ana Gerdau de Borja Mercereau cresceu acostumada a liderar – e a mediar conflitos desde cedo. A vocação da gaúcha de 42 anos se traduziu nas diversas vezes em que foi representante e líder de turma, do ensino fundamental ao médio. Durante a graduação em Ciências Jurídicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), teve papel crucial na viabilização de patrocínios para levar equipes das quais era membro para participar de competições de direito internacional e arbitragem.
No início dos anos 2000, a arbitragem ainda era novidade no Brasil e não parecia uma possibilidade concreta de atuação profissional. Mesmo assim, Ana apostou no seu interesse e atuou em simulações de tribunal arbitral ainda enquanto estudante.
Formou-se com láurea acadêmica e partiu da UFRGS para cursar um LLM (mestrado em Ciências Jurídicas) na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. A paixão pelos estudos na área da arbitragem se tornava cada vez mais real.
“Na minha área, um LLM no exterior, em língua inglesa, é essencial. Além de ser uma experiência de vida maravilhosa, é uma formação fundamental”, reflete hoje, vinte anos depois.
A curiosidade a manteve no mundo acadêmico e a encaminhou para um doutorado, também na Universidade de Cambridge. Com o título de doutora, voltou ao Brasil, mas redirecionou a rota da capital gaúcha para São Paulo, centro da arbitragem comercial no país.
Foram seis anos de aprendizados intensos em solo brasileiro, até que Ana decidiu que era o momento de alçar novos voos. “Queria ter uma experiência como advogada em casos internacionais de investimento, que foi o tema do meu doutorado”, justifica. O destino foi Paris – só não esperava que acabaria ficando por lá, onde se casou com um francês e hoje cria dois filhos.
A primeira oferta em Paris veio da firma Cleary Gottlieb Steen & Hamilton, escritório americano. Em 2018, tornou-se associada do escritório Derains & Gharavi, um dos mais conhecidos quando se trata de disputas internacionais.
Hoje, com 16 anos de carreira na arbitragem internacional, Ana decidiu abrir o próprio escritório em Paris e lidera uma equipe na resolução de conflitos comerciais. “Não são muitas as pessoas que gostam de ver o direito pelo lado do empreendedorismo. É preciso, além da ambição, da energia e da disciplina, ter muita competência técnica, que a área exige”, explica.
Mas para quem tem a determinação e a visão de negócios voltada para o direito, não faltam casos de disputas – que Ana resolve em inglês, francês, espanhol e, claro, português.
Arbitragem: embates jurídicos para além das fronteiras
Para quem não está familiarizado com esta área do Direito, Ana conta que hoje trabalha principalmente com os dois tipos de arbitragem que predominam no cenário internacional. O primeiro é a arbitragem comercial que se trava entre empresas: “digamos que exista uma disputa entre uma parte brasileira e uma parte chinesa. O brasileiro não quer recorrer a um juiz chinês, e vice-versa. Então, no contrato, fica prevista a arbitragem.”
Nesses casos, cada parte nomeia um árbitro, e esses dois profissionais escolhem um terceiro para decidir a disputa, ou ainda as partes podem escolher um arbitro único nomeado por elas ou por uma instituição arbitral. O funcionamento desse tipo de disputa acabou sendo definido pelos grandes centros da arbitragem no mundo: Genebra, Paris, Nova York e Londres são alguns deles.
“As partes vão escolher um tribunal privado em um lugar neutro. Nesse exemplo, a sede da arbitragem não vai ser nem no Brasil nem na China. Escolhe-se um lugar neutro, de preferência onde a legislação não permita anular a decisão do árbitro de forma fácil”, explica Ana. No Brasil, os principais centros de arbitragem ficam em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em arbitragem comercial, as companhias podem dispor uma cláusula de arbitragem em contrato, definindo quais conjuntos de regras o procedimento arbitral vai tomar como base. “Essas arbitragens privadas podem inclusive envolver entes estatais, desde que ambas as partes concordem com a cláusula”, pontua Ana.
Existe ainda uma segunda categoria: a arbitragem de investimento. Essa possibilidade é baseada em tratados entre países. Os entes envolvidos nessa modalidade são investidores internacionais e os países anfitriões do investimento. “O investidor estrangeiro pode entrar com uma arbitragem contra o país que recebe o investimento. Por questões de interesse público e da potencial imputação de condenações ao Estado, alguns países já não mantêm tratados que permitam esse tipo de disputa.”, comenta, ressaltando que, na América Latina, esses tratados ainda vigoram em algumas nações.
A carreira de árbitro
Ana explica que, para se firmar na área da arbitragem, o profissional com formação jurídica precisa ampliar o escopo de conhecimentos para atender clientes diversos. É comum encontrar quem transiciona da carreira de advogado para a de árbitro, o que pode ser exercido concomitantemente desde que não haja conflitos de interesses.
“Os árbitros normalmente são advogados excepcionais, com muita experiência. Digamos que o árbitro vá atuar numa disputa da indústria marítima. É melhor que ele seja um advogado que já trabalhou com isso”, esclarece.
Além do domínio dos temas, o árbitro deve garantir sua legitimidade no processo a partir da verificação de conflito de interesse. “As regras mais usadas em arbitragem internacional costumam ser as da Câmara do Comércio Internacional”, diz Ana.
Arbitragem no Brasil
O Brasil não ratificou tratados que possibilitam a arbitragem como forma de resolução de controvérsias entre investidores estrangeiros e o Estado, por estratégias de política externa, na opinião de Ana.
Mas, por aqui, também não faltam casos de arbitragem doméstica entre empresas. “Existem várias situações em que há empresas com arbitragens domésticas, em que existe um controlador estrangeiro do empreendimento, que prefere o sistema de arbitragem ao judiciário”.
Além desses, há um enorme volume de disputas domésticas, entre entes de origem brasileira. A arbitragem, por aqui, se consolidou como alternativa para um sistema judiciário:
“Acredito que se desenvolveu no Brasil pelo fato de ser mais rápido. Porque uma disputa no judiciário pode ser vagarosa. Então, se entendeu que a arbitragem era uma boa alternativa para disputas empresariais, em que o negócio precisa seguir andando”, aponta Ana. Com a arbitragem, uma disputa pode ser resolvida em prazos de um ano e meio ou dois anos, apesar de ter havido nos últimos anos um aumento na duração das arbitragens no Brasil.
Ampliando o perfil dos árbitros mundo afora
Em um ramo tão competitivo, enxergar o trabalho jurídico também como negócio vai além de buscar novos clientes e sustentabilidade a longo prazo. Esse tipo de visão inclui o esforço para tornar o campo mais diverso e inclusivo – para que cada vez mais disputas sejam resolvidas de maneira justa, eficiente e inteligente.
Além de estar à frente do próprio escritório, Ana promove organizações que cultivam a diversidade no ramo da arbitragem. “Fui uma das cofundadoras da Rising Arbitrators Iniciative, que tenta ajudar com questões de transparência em relação aos critérios por meio das quais instituições nomeiam árbitros”.
Um dos focos do movimento concentra-se em instituições arbitrais, com o objetivo de que cada vez mais pessoas jovens, com origens diversas, possam atuar no setor. “Acredito que minha geração já tem sorte, porque há mais diversidade”, conclui.
4.4.2025