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As meninas, de Lygia Fagundes Telles: uma história de amizade e cumplicidade nos anos de chumbo no Brasil

 

“Escrevi que toda minha vida convergia para ele e que era só dele que iria se irradiar de hoje em diante. Quero te dizer também que nós, as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte. Nossa plenitude, eis o que importa. Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros.”

 

As Meninas, página 69 (e-book).

 

 

A AUTORA

Lygia Fagundes Telles nasceu em 19 de abril de 1923, na cidade de São Paulo. Filha de um promotor público e de uma pianista, viveu parte da infância no interior do estado, retornando ainda jovem para a capital. Aos 15 anos e com a ajuda do pai, vai publicar o seu primeiro livro, Porões e Sobrados, uma coletânea com doze contos. Engenhosa e afeita pela carreira literária, Lygia enviou um exemplar de seu primeiro livro para o já conhecido autor de Olhai os lírios do campo, Erico Verissimo, dando início a uma amizade de toda a vida. Poucos anos depois, ingressaria no curso de Direito da USP, onde também cursou Educação Física.

Na época de estudante, colaborou com os periódicos Arcádia e XI de Agosto, além de frequentar encontros e rodas literárias, onde acabou conhecendo Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Foi também nesses eventos que conheceu o crítico de cinema e ensaísta Paulo Emilio Salles Gomes, que mais tarde viria a se tornar o seu segundo marido e que foi um dos fundadores da Cinemateca Brasileira. O primeiro casamento foi com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., com quem teve o único filho, Goffredo da Silva Telles Neto, autor do documentário Narrarte (1990), que trata sobre a vida e a obra de sua mãe.

Em 1970, Lygia obteve sucesso no exterior com os contos de Antes do baile verde, que recebeu o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros, na França. Também ganhou inúmeros prêmios importantes, como o Jabuti com o romance As meninas (1973), obra que foi publicada mais tarde em Nova York, em 1982, com o título The girl in the photograph. Em um salto temporal só para marcarmos a importância de toda a sua obra, em 2005 recebeu o prêmio Camões, a maior distinção literária da língua portuguesa.

Lygia Fagundes Telles é a quarta ocupante da Cadeira nº 16, eleita em 24 de outubro de 1985, na sucessão de Pedro Calmon e recebida em 12 de maio de 1987 pelo acadêmico Eduardo Portella. Foi a terceira mulher a ocupar o espaço de literato imortal, antecedida apenas por Rachel de Queiroz e Dinah Silveira Queiroz. Escrevendo sobre conflitos do cotidiano, solidão, feminismo e explorando a complexidade da vida humana, sua escrita alternou entre romances e contos ficcionais. Seus livros foram publicados e traduzidos em diversos países como Itália, Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Espanha, República Checa e Suécia, além de contar com adaptações para o cinema, o teatro e a televisão.

Advogada, contista e romancista, Lygia trabalhou até os 63 anos como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, além da atuação como presidente da Cinemateca Brasileira, tocando sua brilhante carreira literária ao longo dos anos de forma paralela. Escritora militante das letras, do sonho e da vocação em sermos humanos, volta e meia brinda o público com sua participação em congressos, debates e seminários.

 

A OBRA

Lançado em 1973, As Meninas é um dos títulos mais aclamados da autora paulistana. Seu terceiro romance é marcado por um caráter subversivo e nada morno. O livro também fica entre os selecionados como leitura obrigatória para os vestibulares em todo o território nacional nos dias atuais. Ganhou os prêmios Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte e Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro.

A obra As meninas é, sobretudo, uma escrita de ousadia frente a censura imposta durante o período da ditadura militar no Brasil. Um dos grandes exemplos nesse contexto é a ampla descrição do episódio de uma sessão de tortura e das repressões sofridas por quem se opunha ao regime. A escrita de Lygia se afasta de clichês e não se deixa cair na banalidade, ao explorar intimamente histórias, sentimentos, sexualidade e a confusão da vida cotidiana em um contexto ocupado pela repressão.

Nas pouco mais de 300 páginas, o livro acompanha a jornada de três jovens mulheres universitárias no início da década de 70. Lorena, Ana Clara e Lia são de mundos distantes, vivendo impasses muito parecidos e ao mesmo tempo diferentes, cada qual com seu próprio drama durante o período turbulento da ditadura. Elas têm seus destinos cruzados quando dividem o mesmo teto em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo e acabam por se aproximar, tornando-se amigas e confidentes.

 

“Ser ou estar. Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima. Se eu sou, não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja. Mas não esteja onde? Muito boa a pergunta, não esteja onde. Fora de mim, é lógico. Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos. Apenas isso. Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível.”

 

As Meninas, página 182 (e-book).

 

 

A narração do romance se alterna de forma fluida entre as vozes de cada uma das protagonistas, que vão descrevendo de forma intimista os percalços nada rotineiros de suas jovens existências. Os sujeitos são bastante particulares, dando assim uma sensação de realidade quando se comunicam. A polifonia fica evidente quando atravessamos as páginas e sentimos cada personagem de modo sincero, seguindo a mesma dinâmica ao longo dos 12 capítulos. Utilizando uma linguagem coloquial e diálogos intensos, não há espaço para monotonia, um dos motivos para o sucesso absoluto entre a crítica especializada e os leitores.

Além das típicas transformações da vida adulta, as três meninas encaram as conturbações de um período histórico, enquanto a trama busca desvencilhar as três protagonistas dos papéis normalmente dados às mulheres heroínas dos romances da época. Tudo acontece de maneira rápida e caótica, porém com marcas que permanecerão profundamente em seus respectivos futuros. De maneiras distintas, nossas três meninas convivem com a solidão e a instabilidade da chegada da vida adulta. Lorena é uma estudante de direito, romântica e sonhadora, que não dá grande atenção para questões como política ou drogas. É filha de uma família abastada e ajuda as outras duas amigas com dinheiro. Embora virgem, relaciona-se com um homem casado, pai de cinco filhos, esperando ansiosamente por sua atenção. Lia é estudante de ciências sociais e militante em um grupo de esquerda armada. Seu namorado, Miguel, é preso durante o regime e é trocado por um diplomata. Ana Clara é uma linda estudante de psicologia, marcada por abusos sofridos na infância e dominada pelo excesso de uso de drogas, o que a torna emocionalmente muito frágil. Divide-se entre duas relações amorosas: o noivo rico e um traficante de drogas. As três compartilham a vida até o momento que irão separar-se definitivamente.

 

CURIOSIDADES

Mesmo com as máquinas de escrever, Lygia Fagundes conta que a prática de escrever à mão continuou sendo um hábito, e só após isso sentava-se com sua Remington Junior preta para datilografar.

Lygia e Erico Verissimo nutriram uma longa amizade durante a vida! A história teve início quando a autora, ainda no início de sua carreira, enviou sua primeira coletânea de contos, Porão e sobrado, junto com uma carta animada intimista e decidida. Confira um trecho:

 

“– Erico Verissimo, vou lhe contar um segredo. Promete não divulgar? Então, ouça: tenho um livro pronto! Sim senhor! Um livro com catorze contos! Dei-o a um editor mas o diabo do homem, antes de ler os originais, cismou que a minha cara devia ser muito mais interessante do que os contos todos e por isso, decidiu botar o meu retrato no livro. Com bons modos, disse-lhe que achava isso muito ridículo. Insistiu. Fiquei zangada;(...)”.

 

Além de escritora, Lygia também é premiada como roteirista, com o prêmio Candango pela obra Capitu ( 1967 ). Baseada no clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis, o filme completo está disponível no Youtube.

 

DICAS DO LING

Você sabia que o livro As Meninas também recebeu uma adaptação cinematográfica? O filme, que leva o mesmo título e foi lançado em 1995, foi dirigido por Emiliano Ribeiro e recebeu prêmio o de Melhor Atriz, compartilhado entre as três protagonistas - Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz, no Festival Internacional de Cinema de Cartagena, na Colômbia. Disponível na plataforma Looke, agregada ao Amazon Prime Video.

Existem dois documentários sobre a vida da escritora Lygia Fagundes Telles. O primeiro deles foi produzido por seu filho, Goffredo da Silva Telles Neto, como vimos na seção sobre a autora e, o segundo, é a obra Lygia, Uma Escritora Brasileira, lançado em 2017 e produzido pela TV Cultura.

Em maio de 1997, Lygia Fagundes Telles participou da série "O escritor por ele mesmo", recitando alguns contos. Disponível no canal do Youtube do Instituto Moreira Salles.

 

REFERÊNCIAS

Biografia: Lygia Fagundes Telles. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/lygia-fagundes-telles/biografia

Lygia Fagundes Telles. Grupo Editorial Globo. Disponível em: https://grupoeditorialglobal.com.br/autores/lista-de-autores/biografia/?id=140

Lygia Fagundes Telles. In Britannica Escola. Web, 2021. Disponível em: https://escola.britannica.com.br/artigo/Lygia-Fagundes-Telles/483584

TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas. 5.ª ed. Rio de Janeiro, J.Olympio, 1974. 266p. Disponível em: http://periodicos.iftm.edu.br/index.php/boletimiftm/article/view/154/47

Instituto Moreira Salles. Lygia Fagundes Telles. Disponível em: <https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-lygia-fagundes-telles/>

TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo, 2009. 304 p. Disponível em: https://lelivros.love/book/baixar-livro-as-meninas-lygia-fagundes-telles-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/

Acervo: Instituto Moreira Salles,  Arquivo Lygia Fagundes Telles. Disponível em: https://ims.com.br/por-dentro-acervos/bandeira-no-arquivo-de-lygia/