Coragem, relevância e atualidade marcam o legado de Caio Fernando Abreu
“Escuta:
não sei escrever poemas
quando estou dentro dum poema
vivo e sem palavras
mas se penso em te dizer
aqui agora assim
forço rimas formas talvez mortas
porque não me esquivo.
Não compreendo nada.
Estou perdido neste apartamento desconhecido. Estou sozinho nesta sala com Villa-Lobos ficando, e pouco sei de mim, de ti. Escrevo para não sentir medo, ainda que não seja bom o que escrevo, ainda que não haja coerência no que sou agora. Não me importa a coerência. Falo um poema em voz alta, apenas para ouvir minha voz. Mas no meio do poema descubro verdades que eu te diria.”
BIOGRAFIA
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu no dia 12 de setembro de 1948, em Santiago do Boqueirão, interior do Rio Grande do Sul. Em 1963, mudou-se com a família para Porto Alegre e alguns anos depois, em 1966, publicou na Revista Cláudia seu primeiro conto, O Príncipe Sapo. Começou, em 1967, a estudar Letras e Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas não concluiu nenhum dos cursos por seu interesse pelo jornalismo. No ano seguinte é aprovado em um concurso para trabalhar na redação da Revista Veja e passa a viver em São Paulo. Caio continua escrevendo contos e romances paralelamente ao trabalho de jornalista. Também trabalhou no Rio Janeiro como pesquisador e redator das revistas Manchete e Pais e Filhos; retornou a Porto Alegre em 1972, sendo redator da Zero Hora.
Os anos 1970 foram marcados pela publicação de seu primeiro romance Limite Branco e pela forte repressão da ditadura militar. Na época, o escritor — fugindo dos militares — precisou se refugiar no sítio da escritora Hilda Hilst; posteriormente, acaba exilando-se na Europa, onde morou em Londres e Estocolmo, mas depois retorna ao Brasil.
Caio é uma das figuras mais importantes da literatura LGBTQIA+ brasileira, sempre dando voz a seus sentimentos e abordando temas tabus como a AIDS e a homossexualidade. Em 1993, quando trabalhava no jornal O Estado de São Paulo, descobriu ser portador do vírus HIV e corajosamente decidiu escrever sobre sua vivência em crônicas publicadas pelo jornal semanalmente. Essa série de crônicas é formada por três cartas e se chama Cartas para Além do Muro. O escritor faleceu em decorrência da AIDS em 25 de fevereiro de 1996, em Porto Alegre.
“Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. (...) Tudo me parece muito lógico: que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! (...) Só choro às vezes porque a vida me parece bela. (O sol. As cores. As coisas) Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo.” (trecho da carta a artista Maria Lídia Magliani)
OBRA
Caio Fernando Abreu é um dos mais prolíficos e criativos escritores das décadas de 1970 a 1990. Seus contos são amplamente conhecidos pelo público, mas Caio ainda escreveu peças teatrais, artigos e resenhas para revistas e jornais, assim como romances para crianças e adultos. Suas principais obras são: O Ovo Apunhalado (1975), Morangos Mofados (1982), Triângulo das Águas (1983), Os Dragões não conhecem o Paraíso (1988), Onde Andará Dulce Veiga? (1990) e Ovelhas Negras (1995). E ele também era poeta! Escreveu mais de cem poemas que o público desconhece. Publicou, em jornais e suplementos literários, apenas quatro: Gesto, Prece, Oriente e Press to Open.
Sua obra fala sobre instabilidade, inquietude e ausência. Sempre falta algo a Caio, seja dinheiro, tempo ou alguém. A presença constante da ausência é explícita na crônica Existe sempre alguma coisa ausente (Folha de São Paulo, 3 de abril de 1994). E essa falta é dolorosa e profunda, mesmo que não saibamos exatamente o que falta. Ou quem. A vida e a obra de Caio se confundem. Seu mergulho no esoterismo, nas religiões, nas drogas, num jeito alternativo de viver refletem sua busca incessante por sentido.
A linguagem de Caio é um reflexo de seu tempo. É importante lembrar que, durante grande parte em que produzia seus textos, o Brasil experienciava anos difíceis de ditadura. Caio abraçou assuntos complicados não só como tema, mas como parte do seu linguajar poético. Seu jeito confuso, de escrita caótica, se alinhava com uma linguagem fluida e dinâmica. Escritor lírico o tempo todo, até em prosa. Fez poesia visceral, cheia de interrogações — numa espécie de “mosaico de falas, pensamentos e divagações” (CHAPLIN, 2010, p. 25). Fez poesia cheia de musicalidade e livre de métrica.
O humor ácido é forte característica de sua obra. Explorou a angústia, a efemeridade da vida e das coisas, falou abertamente sobre sexo e sua sexualidade. Falou de enfrentamentos, da busca por identidade, dos assuntos proibidos. Tentou dar significado às suas perdas, dores, amores. O amor foi um assunto imprescindível. Para ele, o amor é quase como uma morte, porque nos desmonta por completo, expõe nossas vulnerabilidades. O amor instaura o caos, destrói tudo que é seguro. E é preciso ter coragem para enfrentar o amor, coragem essa que parecia afugentar as pessoas de seu tempo. Como dito em uma de suas crônicas: “No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta” (Extremos da Paixão, em Pequenas Epifanias). E Caio ama profundamente. Afinal, amar também é tornar-se humano, é olhar com novo olhar as pessoas e o mundo. O amor é luz e trevas, a experiência humana mais necessária, porque nos coloca frente à vontade e às limitações não só nossas, mas do outro. E, nesse sentido, poucos foram tão viscerais quanto Caio.
CURIOSIDADES
Você sabia que este ano acontece a 1ª edição do Prêmio Caio Fernando Abreu? Ele é organizado pela Editora Reformatório em parceria com o Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade/Mix Literário e tem como objetivo premiar obras inéditas em língua portuguesa de escritores LGBTQIA+.
Caio era um grande admirador de Hilda Hilst e chegou a morar com a poeta em diversas ocasiões. Conheça um pouco mais sobre Hilda e sua famosa Casa do Sol.
Além de Hilda Hilst, outros célebres poetas eram referência para Caio F.: Carlos Drummond de Andrade, Ana Cristina César, Adélia Prado, Mário Quintana, (Luís de) Camões e Fernando Pessoa.
PREMIAÇÕES
Prêmio José Lins do Rego: recebeu menção honrosa para o conto Três tempos mortos (1968).
Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de escritores (UNEB) para a coletânea de contos Inventário do irremediável (1969).
Prêmio do Instituto Estadual do Livro para o conto Vista (1972).
Prêmio Nacional de Ficção: recebeu menção honrosa por O Ovo Apunhalado (1973).
Prêmio Leitura do SNT pela peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora (1975).
Prêmio Status de Literatura para o conto Sargento Garcia (1980).
Prêmio Jabuti: ganhou três vezes na categoria Crônicas, Contos e Novelas pelas obras: O Triângulo das Águas (1984), Os Dragões Não Conhecem o Paraíso (1989) e As Ovelhas Negras (1995).
Prêmio Molière: recebeu junto com Luiz Artur Nunes pela autoria do melodrama A maldição do Vale Negro (1989).
Prêmio APC (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor romance do ano para Onde Andará Dulce Veiga? (1991).
DICAS DO LING
- Assista ao documentário Sobre Sete Ondas Verdejantes (2014), de Bruno Polidoro e Cacá Nazário. Biografia poética de Caio, com fragmentos de poemas, contos e depoimentos de amigos como Maria Adelaide Amaral, Adriana Calcanhoto e Grace Gianoukas.
- Você sabia que nas cartas do autor aparecem inúmeras referências musicais? A partir disso, Helder Patter Ferreira, entusiasta da obra de Caio, criou uma playlist no Spotify só com as músicas presentes na biografia Para sempre teu, Caio F., da jornalista Paula Dip.
Ficou com vontade de ler mais algumas poesias do Caio? Você encontra o livro Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu nos seguintes sites: Estante Virtual | Amazon
REFERÊNCIAS
AVENDAÑO, Tom C. Caio Fernando Abreu é jovem como sempre, relevante como nunca. Jornal El País Brasil, 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/10/politica/1536537646_398336.html
CHAPLIN, Letícia da Costa. De Ausências & Distâncias te construo: a poesia de Caio Fernando Abreu / Letícia da Costa Chaplin. - Porto Alegre, 2010. 294 f. Tese (Doutorado em Letras) _ Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre, BR-RS, 2010. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27153/000762479.pdf?sequence=1&isAllowed=y
DIEL, Vitor. Prêmio Caio Fernando Abreu 2020: inscrições até 31 de agosto. Site Literatura RS, 2020. Disponível em: https://literaturars.com.br/2020/07/08/premio-caio-fernando-abreu-2020-inscricoes-ate-31-de-agosto/
FRAZÃO, Dilva. Caio Fernando de Abreu: Escritor e jornalista brasileiro. Site E Biografia, 2018. Disponível em: https://www.ebiografia.com/caio_fernando_abreu/
Sem autor: Quem foi Caio Fernando Abreu, escritor que completaria 70 anos hoje. Revista Veja, 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/google-presta-homenagem-aos-70-anos-de-caio-fernando-abreu/
Sem autor: Para entender Caio Fernando Abreu: confira livros, filmes e peças sobre o poeta gaúcho. Site Gaúcha ZH, 2018. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2018/09/para-entender-caio-fernando-abreu-confira-livros-filmes-e-pecas-sobre-o-poeta-gaucho-cjlz14vjd02mi01px3tf8ov6x.html