Foto: Luis Miguel Martins/ Wikimedia Commons Foto: Luis Miguel Martins/ Wikimedia Commons

Entre poesias, contos, crônicas e romance: o fenômeno Mia Couto

 

Para Ti

 

Foi para ti

que desfolhei a chuva

para ti soltei o perfume da terra

toquei no nada

e para ti foi tudo.

 

Para ti criei todas as palavras

e todas me faltaram

no minuto em que talhei

o sabor do sempre.

 

Para ti dei voz

às minhas mãos

abri os gomos do tempo

assaltei o mundo

e pensei que tudo estava em nós

nesse doce engano

de tudo sermos donos

sem nada termos

simplesmente porque era de noite

e não dormíamos

eu descia em teu peito

para me procurar

e antes que a escuridão

nos cingisse a cintura

ficávamos nos olhos

vivendo de um só

amando de uma só vida.

 

Mia Couto, do poemário Raiz de Orvalho e Outros Poemas.

 

 

VIDA

Antônio Emílio Leite Couto nasceu em Moçambique, na cidade da Beira, banhada pelo Oceano Índico, em 5 de julho de 1955. O apelido, que mais tarde foi adotado como pseudônimo, veio do amor aos gatos. Embora não tivesse um, Mia Couto conta que, na infância, a mãe costumava alimentar os gatos da vizinhança que visitavam a varanda de sua casa. Filho de um poeta e de uma contadora de histórias, emigrantes de Portugal, Mia cresceu em um ambiente familiar muito estimulante. Iniciou a sua trajetória literária na poesia: aos 14 anos teve seu primeiro poema publicado no jornal Notícias da Beira, dedicado ao pai. Aos 17 anos, mudou-se para a capital de Moçambique, à época sob o domínio português e ainda chamada de Lourenço Marques, atualmente Maputo. Lá ingressou na Faculdade de Medicina, com interesse pela área da psiquiatria, desistindo do curso dois anos mais tarde. Muito provavelmente podemos afirmar que a verve do movimento de independência – Moçambique tornou-se livre do domínio português somente em 1975; tenha exercido forte influência sobre os caminhos de Mia, que chegou a se alistar na Frente de Libertação de Moçambique. Ele então migrou para o jornalismo e, de 1974 a 1985, atuou como repórter e escreveu para diferentes periódicos, além de um período como diretor da Agência de Informação de Moçambique. Considerado por muitos um “escritor da terra”, sua transição do jornalismo para a biologia soa com naturalidade: a partir de 1985, iniciou sua formação como biólogo, encontrando nesse universo novas possibilidades também para a sua escrita.

 

“Ao fazer biologia, ganhei proximidade com criaturas que me contam histórias. Às vezes, são bichos. Outras, rios e árvores. Sei que não estou romantizando. A biologia me serve de tradutora dessas criaturas e me ensina que existem linguagens não humanas que me humanizam”, Mia Couto.

 

Mia formou-se em Biologia, especializando-se na área de ecologia, em que dá aulas. Como biólogo tem realizado trabalhos de pesquisa em diferentes áreas, como gestão de zonas costeiras e registro de mitos, lendas e crenças que intervêm na gestão tradicional dos recursos naturais. É diretor e colaborador da empresa Impacto – Avaliações de Impacto Ambiental. Em 1992, foi responsável pelo projeto de preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca.

É casado com a Patrícia, médica hematologista, e pai de três filhos.

 

OBRA

Mia Couto é o escritor moçambicano com o maior número de obras traduzidas para outras línguas, com livros publicados em mais de 24 países. Seu trabalho traz fortes referências às raízes da terra e ao povo africano, acompanhado pela busca de uma identidade nacional. Em 2013, recebeu o Prêmio Camões, o de maior prestígio da língua portuguesa, e em 2014 recebeu o prêmio Neustadt International Prize for Literature, considerado o “Nobel Americano”, pelo conjunto de sua obra. É sócio correspondente, desde 1998, da Academia Brasileira de Letras.

Suas influências foram abastecidas ao longo da vida por inúmeras vertentes, destacando em diversas entrevistas a sua infância, recheada de poesia — o pai, Fernando, o ensinava sobre ela como “um modo de estar na vida" e não somente como um gênero literário. Podemos dizer que Mia carrega isso dentro de si: ele afirma que a poesia funciona para ele como a chuva que vem para limpar o céu. A prosa também foi um caminho trilhado por Mia, tornando-o conhecido mundialmente. Para ele, embora de maneiras distintas e bem definidas pelas fronteiras dos gêneros literários, a prosa e a poesia caminham juntas, já que algumas coisas só podem ser ditas nas frases de uma prosa e outras apresentadas nos versos de um poema. Pode-se brincar e caminhar entre elas com a leveza da desobediência literária, e isso acontece amplamente no seu processo de escrita, que o mesmo define como caótico.

Mia Couto divide-se entre livros de romance, prosa, poesia, contos, crônicas e literatura infantil, além de produções acadêmicas. Segundo o autor, a inspiração para as suas criações surge de forma livre e involuntária, atropelando sua escrita mesmo que ele encontre-se focado em outro projeto. Foi assim, por exemplo, que nasceu o livro A confissão da Leoa, escrito durante uma expedição como biólogo, em que se deparou com uma série de ataques de leões aos moradores da região que pesquisava. Em muitos de seus textos ele conversa sobre o mundo de forma ficcional e com dimensões poéticas, conforme explica: “Nós precisamos viver em fantasia e carecemos da ficção como do ar que respiramos”. Em seus textos, podemos nos deparar com discussões sociais, ligações com a realidade ancestral e contemporânea do povo africano. Conseguimos ver a língua, a terra e a tradição. Utilizando da criação de provérbios, uso de enigmas, lendas e metáforas, a proximidade entre Brasil e Moçambique são repassadas com uma mistura dos dicionários que dão um novo ar às narrativas, com vocábulos de muitas regiões entrelaçadas. Na sua literatura também é notável o uso do “realismo mágico”, conhecido na sua terra natal como "realismo animista”.

Na poesia iniciou suas publicações com a obra “Raiz de Orvalho”, publicada em 1983; seguido de Raiz de Orvalho e outros poemas (1999); Idades, Cidades, Divindades (2007) e Tradutor de Chuvas (2011). Como contista, destaca-se pelas obras Cada homem é uma raça (1990) e Contos do Nascer da Terra (1997).  Entre outros sucessos, temos o romance Terra sonâmbula (1992), eleito um dos mais importantes da literatura africana do século XX, e a crônica E se Obama fosse Africano? (2009).

 

PREMIAÇÕES

Prêmio Anual de Jornalismo Areosa Pena (Moçambique) com o livro Cronicando, em 1989;

Prêmio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora (Portugal), em 1990;

Prêmio Nacional de Ficção da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), com o livro Terra Sonâmbula – Considerado por um júri especialmente criado para o efeito pela Feira Internacional do Zimbabwe, em 1995;

Prêmio Mário António (Ficção) da Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal), com o livro O Último Voo do Flamingo, em 2001;

Prêmio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007;

Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura (Brasil), com o livro O Outro Pé da Sereia, em 2007;

Prêmio Eduardo Lourenço (Portugal), em 2011;

Prêmio Camões (Brasil e Portugal), em 2013;

Prêmio Internacional Literatura Neustadt, da Universidade de Oklahoma (EUA), em 2014.

 

CURIOSIDADES

Vale ressaltar que o autor também é fundador de uma empresa de estudos ambientais da qual é colaborador, que realiza avaliações de Impacto Ambiental. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca, situada na baía de Maputo, no sul de Moçambique.

Segundo o autor, seu pseudônimo “Mia” foi escolhido pela paixão que nutria por gatos, mesmo sua família não os tendo em casa, sua mãe alimentava alguns abandonados.

Entre suas principais referências no Brasil, nutre forte admiração pelo trabalho de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Manoel de Barros e as músicas do gênero MPB. Mia Couto conversa sobre o assunto na entrevista concedida à historiadora Lilia Schwarcz.

 

DICAS DO LING

Mia Couto produz textos sobre a Covid-19 para o New York Times desde o começo a pandemia.

O documentário Sou Autor Do Meu Nome Mia Couto, produzido por Solveig Nordlund, que apresenta a vida e obra do autor Mia Couto, está disponível na plataforma RTP Play de Portugal.

No evento do Fronteiras do Pensamento, o escritor realizou a palestra “Pelo reencantamento do mundo”, em 2013.

 

REFERÊNCIAS

Biografia Mia Couto. FNAC. Disponível em: https://www.fnac.pt/Mia-Couto/ia240684/biografia

Brandão, Beatriz. Pequenos fragmentos de Mia Couto sobre infância, estórias, gatos e o feminino. Estante Blog, 2019. Disponivel em: https://blog.estantevirtual.com.br/2019/05/07/pequenos-fragmentos-de-mia-couto-sobre-infancia-estorias-gatos-e-o-feminino/

Entrevista: "O realismo é sempre mágico" por Mia Couto. Diário Catarinense, 2014. Disponível em: https://www.fronteiras.com/ativemanager/uploads/arquivos/imprensa/b0a8dfec1f248b01200c1cfadfd5d71b.pdf

FENSKE, Elfi Kürten. Mia Couto: Biografia, bibliografia e premiações. Fundação Mia Couto. Disponível em: https://www.miacouto.org/

Ornelas, José N. Mia Couto No Contexto Da Literatura Pós-colonial de Moçambique. Luso-Brazilian Review 33, n° 2, 1996, p. 37-52. Acesso em: 30 ago. 2021. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3513768

RODRIGUES, José Paz. Mia Couto, importante literato de Moçambique, 2019. Disponível em: https://pgl.gal/mia-couto-literato-mocambique/