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Heitor Saldanha: redescubra a trajetória do poeta gaúcho modernista

 



Hoje enquanto tiver dinheiro beberei
Depois entregarei ao garçom
meu relógio de pulso
meus carpins de nylon
meus óculos de tartaruga (que nome bonito)
minha caneta tinteiro
e continuarei bebendo
bebendo
sem literatura
sem poema
sem nada.
Só.
Como se o mundo começasse agora.

Estou nesses conscientes estados de alma
em que não posso me salvar e nem salvá-la.

 

BIOGRAFIA

Heitor Saldanha de Vasconcelos nasceu em Cruz Alta, em 28 de abril de 1910. Filho do ferroviário Otávio Saldanha de Vasconcelos e de Amélia Gonçalvez Dias Saldanha de Vasconcelos, Heitor começou a trabalhar desde muito cedo, o que de alguma forma explica o seu ingresso tardio no universo formal da poesia, que aconteceria por volta de seus trinta anos de idade. Antes disso, ainda jovem, começou a trabalhar na construção de estradas, por influência do pai, suprindo operários com água, para depois se estabelecer como telegrafista, função que exerceu até o início dos anos 1940. Muito provável também que, desses tempos de formação, se enraizasse no coração de Heitor Saldanha a temática social, característica que vai marcar presença em sua obra. Filho mais velho entre onze irmãos, cabe ainda agregar que o pai tocava violão e era repentista, e que sua mãe descendia, segundo o próprio Saldanha, do poeta Gonçalves Dias. Está dado assim o enredo em que faz as bases do nosso homenageado.

Foto: Heitor Saldanha.

Em 1939, já residindo em Porto Alegre, nasce a filha Deoneia. No mesmo ano, ele vai publicar o primeiro livro de poesia, Casebre, sendo mais tarde renegado de sua bibliografia pelo próprio Saldanha.   

Os primeiros anos de 1950 foram muito fecundos para o autor, com novos lançamentos como o livro A outra viagem e as novelas Terreiro de João sem lei e Apenas o verde silêncio. Saldanha também inicia a sua participação no Grupo Quixote, responsável pela publicação de revista homônima. Foi também nesse período que Saldanha partiu para uma imersão nas minas de carvão, acompanhando a rotina dura dos trabalhadores carvoeiros da região de São Jerônimo, buscando novas perspectivas e inspirações para sua poesia.

 

Todos os dias eu descia ao fundo do poço e via como era a vida de um mineiro. Trabalhei ali uns dois anos e meio e encontrei o tema de As galerias escuras. Foi uma forma de sair em busca da poesia, embora não seja necessário que para se escrever sobre alguma coisa se participe diretamente dela”. Depoimento de Heitor Saldanha para o fascículo Autores Gaúchos.

 

Em 1957, Heitor Saldanha se casa com a escritora gaúcha Laura Ferreira, mudando-se no ano seguinte para o Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa, acaba conhecendo e cultivando amizade com Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Em 1960, nasce o seu segundo filho, André, que inspira poema de mesmo nome, publicado posteriormente em seu livro mais conhecido, A Hora Evarista.

 

Foto: Capa do livro A Hora Evarista, de Heitor Saldanha.

 

nos parecemos tanto

eu e meu filho

que brigamos sem saber por quê

e nos amamos sem saber por quê

mas ele é jovem e inteli-gente

espero um dia

nos compreendamos sem saber por quê

 

André, de Heitor Saldanha

 

Entre idas e vindas do fluxo da vida, Heitor Saldanha vai retornar à Porto Alegre em 1970, entre outros motivos, em razão do falecimento do pai. Nesta nova etapa, vai colaborar com a produção do programa de rádio Poesia na Guaíba, apresentado pelo radialista José Fontella. Em 1974, Saldanha é eleito para a Academia Rio-Grandense de Letras e passa a colaborar regularmente com poesia, crítica literária e de arte, para os jornais Correio do Povo e Folha da Tarde. É nesse mesmo ano que Saldanha vai lançar A Hora Evarista, na Feira do Livro de Porto Alegre, reunindo as séries anteriores - “A outra viagem”, “As galerias escuras”, “A nuvem e a esfera”, além da coletânea até então inédita de poemas, que dá o título ao volume e reúne os últimos poemas publicados do autor.

De 1977 a 1979, Saldanha vai trabalhar como assessor administrativo no governo estadual de Sinval Guazzelli, ainda na ditadura militar, recebendo aposentadoria compulsória quando chegava aos seus 70 anos de idade.

A esta altura, Saldanha já era poeta reconhecido, presente em antologias críticas e literárias, incluindo A antologia da poesia brasileira contemporânea, organizada em 1983 pelo escritor Carlos Nejar, sendo publicada em Lisboa, três anos mais tarde, visando o público português.

Heitor Saldanha seguiu produzindo e chegou a mencionar em entrevista que possuía ao menos quatro obras inéditas. Já com a saúde frágil, veio a falecer em 13 de novembro de 1986, aos 76 anos. Seu acervo foi doado pela família ao Instituto de Letras e Artes da UFRGS em 2014, contendo mais de 600 itens, entre livros, textos, rascunhos, quadros, documentos, anotações e correspondências. O universo de Heitor Saldanha esperando pacientemente por novos leitores.

 

OBRA

A produção de poemas de Heitor Saldanha encontrou diferentes espaços para sua circulação, para além dos quatro livros de poesia publicados – A outra viagem (1951), Nuvem e Esfera (1969), As Galerias Escuras (1969) e A hora Evarista (1974). Sobre o número de obras, faz-se o parêntese: alguns consideram que sejam cinco publicações no total, sendo que Saldanha está entre os que discordam desse número, renegando, como vimos, o livro Casebre, de 1939, aquele que seria o seu primeiro.

Entre o intervalo de suas publicações, Saldanha contribuiu amplamente com iniciativas vanguardistas, como da Revista Quixote. Entre os anos de 1947 e 1952, Saldanha participou das cinco edições da revista, organizada pelo grupo Quixote, fundado pelo trio de escritores e, então, estudantes de Direito, Raymundo Faoro, Wilson Chagas e Fernando Jorge Schneider, agregando mais tarde também Paulo Hecker Filho, Vicente Moliterno e Pedro Escosteguy. Essa participação em uma revista de literatura, que também se propunha a arejar a intelectualidade e a crítica da época, trouxe visibilidade para a produção e para a própria figura de Saldanha, como demonstra o escritor Guilhermino César:

 

Heitor Saldanha é de outra idade, mas pertence à geração riograndense que começou a aparecer nos últimos cinco anos. Maturado, espontâneo, de uma honestidade intelectual exemplar, vive em estado de poesia, como os santos viveram em estado de graça. Seu sonambulismo, na vida, tem exata correspondência em sua poesia.” Guilhermino César, em crítica literária publicada na revista Província de São Pedro, em 1952.

 

Além da Quixote, Saldanha compartilhou seus textos na revista Província de São Pedro, considerada uma das melhores publicações culturais de sua época, circulando de 1945 a 1957. Da sua temporada no Rio de Janeiro, Saldanha vai participar dos cadernos de poesia Violão de Rua, publicação organizada pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que faz circular também a poesia de Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar e Paulo Mendes Campos, entre outros nomes.

Ele também vai escrever pelo menos duas novelas, Terreiro de João sem lei e Apenas o verde silêncio, produção coletiva com Sílvio Duncan, Jorge Cezar Moreira e Joaquim Azevedo, sob o pseudônimo único de Antônio Damião.

Inspirado pela temática social, reflexões existenciais, amor e amizade, Heitor Saldanha era poeta de linguagem simples e crua. Transitou entre mundos diferentes, mantendo sua essência e seu pacto com a poesia. Considerado um dos principais poetas modernistas do Rio Grande do Sul, Saldanha deixou sua marca na história recente da literatura gaúcha. Teve reconhecimento entre seus contemporâneos e carece ser redescoberto por novos leitores, abrindo espaço para novas edições e publicações. Sem demora, ainda poderemos ter a sorte de ler seus inéditos e outros tesouros que seu acervo certamente reserva.

 

CURIOSIDADES

Em 1958, junto com o artista plástico Waldeny Elias (1931-2010), numa produção conjunta com o Teatro de Equipe, publica As minas, álbum de xilogravuras que ilustram um dos primeiros poemas do autor abordando a temática dos carvoeiros.

No acervo de Heitor Saldanha, existem pelo menos três cartas de Drummond para o poeta, felicitando-o pelo lançamento de seus três livros (A outra viagem, Nuvem e subsolo e A hora evarista), reconhecendo a qualidade de seus versos e demonstrando acompanhar o seu progresso.

Conheça o Editorial da primeira edição da Revista Quixote e entenda a verve idealista e inovadora da publicação. Disponível aqui.

 

DICAS

Não encontramos a edição da revista Violão de Rua com os textos de Saldanha mas, sim, encontramos a sua primeira edição, que circulava pelo Rio de Janeiro nos anos de 1960

Neste artigo, a professora Léa Masina apresenta uma viva fotografia do cenário literário no Rio Grande do Sul, que nos ajuda a entender o espírito da época e a importância de instituições como o Instituto Estadual do Livro. 


Referências:

https://ofazedordeauroras.blogspot.com/2010/04/heitor-saldanha-cem-anos-do-poeta.html

http://repositorio.furg.br/handle/1/8057

http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=352