Obra: Dia de Verão (1926), de Georgina Albuquerque Obra: Dia de Verão (1926), de Georgina Albuquerque

Loucas no sótão: as mulheres da arte no século 20

Você pode estar se perguntando o porquê do nosso título para a segunda aula do ciclo – Loucas no sótão. Pois bem, vamos então aquecer o papo aqui, introduzindo o contexto em que a produção de arte por mulheres se dá, considerando o século 19, recorte de nosso encontro.

É durante o século 19 que acontece a construção da imagem da mulher como guardiã da virtude e como anjo do lar. A esfera privada (sua casa) é o seu reino; cuidar dos filhos e do marido é a sua missão. Existe uma espécie de valorização da figura feminina sensível para naturalizar um papel subalterno que era limitado a servir e entreter as figuras masculinas que a rodeavam, ignorando assim sua vontade própria em benefício da família. Esse falso altruísmo acabava por silenciar e enclausurar a mulher no espaço doméstico.

Mas como assim? O que estava acontecendo no mundo e que favorecia essa condição? Então vejam que interessante, curiosa e até mesmo contraditória é a nossa construção histórica como sociedade, estabelecendo o comportamento e as ideias de cada época.

É no século 19 que o desenvolvimento tecnológico e o conhecimento científico vão florescer, como consequência da Revolução Industrial iniciada na metade do século anterior, estimulando significativas transformações na sociedade e lançando as bases do mundo como o conhecemos hoje – seja para o bem ou para o mal. É também nesse período que vai se consolidar a ideia de Estado-Nação, organizando uma nova ordem geopolítica com a criação de países e a revisão entre os papéis da Igreja e do Estado. Com tantas transformações em andamento, no mundo das ideias e do conhecimento vimos a sistematização das áreas do saber, com o estabelecimento de escolas politécnicas, museus, sociedades científicas e afins. Não à toa foi nesse período que o termo “cientista” foi cunhado. As ciências exatas como a Física e a Química se desenvolveram na velocidade do avanço industrial, e as ciências humanas observaram o nascimento da Sociologia e da Psicologia. Adentrando nesse contexto, surge a ideia da biologização dos comportamentos humanos, compartimentando diferenças entre os gêneros e estabelecendo reações básicas ao tratar de homens e mulheres. A anatomia do corpo da mulher era sensível, segundo os estatutos médicos da época, o que causava a menstruação, a gravidez, o parto, a menopausa, etc. Isso fazia com que seu corpo tivesse um potencial patológico ligado, principalmente, às doenças nervosas. E é essa patologização do corpo feminino que faz com que essas mulheres precisem ser diagnosticadas, tratadas e curadas.

A histeria foi uma epidemia nas principais cidades europeias e era diagnosticada quando as enfermas apresentavam sintomas físicos e psíquicos “falsos”, ou seja, a doença era vista como uma ilusão ou encenação, mesmo que não intencional, e por isso foi entendida como uma forma de loucura das mulheres. É importante destacar que a figura do louco é silenciada desde a Idade Média e que já existia a necessidade dessa pessoa ser tutelada, uma vez que tudo aquilo que ela diz é desconsiderado, é tido como nulo ou inútil. Segundo a filósofa Viviane Bagiotto Botton, o interesse em estudar e tratar a histeria só surgiu quando as escolas de neuro-psiquiatria começaram a usar as histéricas como cobaias de suas pesquisas.

A loucura e a histeria eram diagnósticos dados a todas aquelas que tinham comportamentos incomuns, vistos como negativos, como aquilo que as mulheres não deviam ser. Se gritavam, choravam, alteravam seu jeito de falar, mentiam: histéricas. A doença era também o que lhes tirava a liberdade de expressão, já que, quando inconvenientes, eram diagnosticadas – por médicos homens e sua verdade científica – e passíveis de intervenção e tratamento. O diagnóstico servia também para desresponsabilizar as mulheres de suas ações ao fragilizá-las ou vitimizá-las, retirando-as da vida social e isolando-as em casa para o cuidado dos filhos. Ser taxada como doente aniquilava a possibilidade de ser vista como cidadã e isso afetava sua vida prática, afinal não poderia deliberar sobre si ou sequer possuir bens.

É por isso que pensar o feminino no século 19 é pensar sobre a loucura, já que, controversamente, muitas vezes foi através do diagnóstico de loucura que as mulheres conseguiram transgredir o papel imposto a elas pela sociedade. Ainda segundo Botton:

 

A Histeria foi uma manifestação das mulheres que espetacularizava suas mazelas, e também pode ser lida como sendo uma maneira de expressão e expansão feminina na época, além de ser um modo de chamar a atenção para si (como descreve Freud em seus primeiros trabalhos), também era um modo de existir (e talvez resistir) nas fronteiras entre o apagamento total e a possibilidade de serem livres sendo loucas.

Viviane Bagiotto Botton no artigo Histeria, mulher e feminino.

 

Esta é a tese sugerida por Michel Foucault, estudioso da loucura, que a entende como uma possibilidade de fuga da estrutura normativa a que eram submetidas essas mulheres.

E o que tudo isso tem a ver com arte?

Longe de romantizar as torturas a que eram submetidas essas mulheres, trazemos essa questão porque algumas das grandes artistas do período sofreram de doenças nervosas, tendo sido internadas em hospitais psiquiátricos e desprovidas de qualquer controle sobre suas criações, ou ainda abordaram este assunto em suas produções artísticas. Este é o caso da escritora Charlotte Perkins Gilman que em O papel de parede amarelo, faz uma forte crítica à sociedade patriarcal e aos tratamentos torturantes a que eram submetidas as mulheres diagnosticadas com doenças nervosas, que envolviam desde o confinamento e o total repouso, até o choque elétrico, levando-as assim à depressão e à loucura de fato.

Também é o caso de Camille Claudel, brilhante escultora francesa que rompeu com o destino imposto às mulheres de sua época, mas condenada a viver em um hospital psiquiátrico pelo próprio irmão, o diplomata e poeta Paul Claudel. Barrada de frequentar a École des Beaux-Arts - a principal academia de arte francesa -, Camille frequentou a Académie Colarossi, um dos únicos espaços que aceitavam mulheres artistas. Não se casou, não teve filhos e se dedicou à sua arte, trabalhando como ajudante e assistente do escultor Auguste Rodin - o que fez com que ela não assinasse várias de suas obras, que foram atribuídas ao mestre.

 

“Censuraram-me (ó, crime horrendo) por ter vivido completamente sozinha”  Camille Claudel escreveu em carta quando já havia sido internada

no manicômio de Montdevergues

 

O fim do relacionamento abusivo (amoroso e de trabalho) que teve com Rodin, fez com que o irmão a internasse à força, pois era “preciso evitar o escândalo”. O laudo de internação concedido por um médico amigo da família, mostrava as marcas da violenta relação com o escultor e também o julgamento moral de seus hábitos, já que afirmava que:

 

Camille tinha delírios persecutórios envolvendo Rodin e cultivava hábitos miseráveis: não cuida da aparência, usa roupas puídas e sapatos gastos, não se lava, mantém as cortinas sempre abaixadas e as janelas fechadas, alimenta muitos gatos e vive sozinha, reclusa, numa casa quase sem móveis.

No artigo Camille Claudel: a quem serve a normalidade?

 

Ficou internada por 29 anos e acabou falecendo no hospital, mesmo com sucessivos pedidos para que o irmão a retirasse de Montdevergues.

 

“Hoje, três de março, é o aniversário do meu sequestro em Ville-Evrard: faz sete anos que faço penitência nos asilos de alienados. Depois de terem se apoderado da obra de toda a minha vida, mandam-me cumprir os anos de prisão”.

No artigo Camille Claudel: a quem serve a normalidade?

 

 

PRINCIPAIS EXPOENTES

A segunda aula no novo ciclo do Conversas sobre Arte traz a historiadora da arte Joana Bosak falando das artistas do século 19. Escolhemos algumas obras fundamentais do período para que você fique com gostinho de quero mais! Para visualizar as obras, basta clicar nos nomes sublinhados.

 

NAS ARTES VISUAIS

Rosa Bonheur (1822-1899) A Feira de Cavalos, 1852-55, The Metropolitan Museum of Art, Nova York, Estados Unidos | A Feira de Cavalos, 1855, National Gallery, Londres, Inglaterra | O pequeno lago na planície e o rebanho de ovelhas, sem data, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil | Arando em Nivernais, 1849, Musée d’Orsay, Paris, França

Emily Mary Osborn (1828–1925) Sem nome e sem amigos, 1857, TATE, Londres, Inglaterra | Extra: a mesma obra exposta no MASP e em melhor resolução |

 A governanta, 1860, Yale Center for British Art, New Haven, Connecticut, Estados Unidos | Barcaças à vela, 1880, Stockport Heritage Services, Stockport, Inglaterra

Camille Claudel (1864-1943) A onda, 1897-1903, Musée Rodin, Paris, França | Torso de Clotho, 1893, Musée d’Orsay, Paris, França | A Valsa, 1889-1905, Musée Camille Claudel, Nogent-sur-Seine, França | A Idade Madura, 1899, Musée Camille Claudel, Nogent-sur-Seine, França

Georgina de Albuquerque (1885-1962) Dia de Verão, 1926, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil | Autorretrato, 1904, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil | Dama, 1906, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil | No cafezal, c.1930, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil

Abigail de Andrade (1864-1890) Interior de ateliê, 1889, Coleção Hecilda e Sergio Fadel, Rio de Janeiro, Brasil | A Hora do Pão, 1888, Coleção Hecilda e Sergio Fadel, Rio de Janeiro, Brasil | Autorretrato, exposta na mostra História das Mulheres: artistas até 1900 no MASP, São Paulo, Brasil

 

 

NA LITERATURA

George Elliot (1819-1880) MiddlemarchSilas Marner: O tecelão de Raveloe |

Adam Bede (em inglês) | The Mill on the Floss (em inglês) |  

Virginia Woolf (1882-1941) Um teto todo seu | Orlando | Mrs. Dollaway | Cenas Londrinas

Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) O papel de parede amarelo | Terra das mulheres

 

PARA ENTRAR NO CLIMA

O artigo Por que não houve grandes mulheres artistas, da historiadora da arte Linda Nochlin, é um dos pontos de partida para este segundo ciclo do Conversas sobre Arte. Se ficou com vontade de ler o artigo é possível encontrá-lo on-line e em português e também pode assistir a esse resumo super bacana feito pela youtuber Vivi Villanova!

A famosa frase “Uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção” foi escrita por Virginia Woolf no icônico artigo Um teto todo seu. Em 1985, o diretor Peter Hort lançou um documentário sobre a escritora inglesa que vale a pena ser visto!

Vale a pena conferir: a youtuber Vivi Villanova (ViviEuVi) fez um vídeo curtinho sobre 5 mulheres impressionistas: Berthe Morisot, Mary Cassatt, Marie Bracquemond, Eva Gonzalès e Georgina de Albuquerque; além de fazer uma leitura de imagem da obra O Chá da artista Mary Cassat ! Em outro vídeo ela também falou sobre a escritora inglesa Virginia Woolf.

A exposição Histórias de Mulheres: artistas até 1900, que aconteceu no MASP em 2019, trouxe importantes artistas do século 19, como a sufragista inglesa Emily Osborn e a brasileira Abigail de Andrade, além de belas tapeçarias feitas por mulheres e que hoje integram coleções de peso. A mostra teve uma continuação chamada Histórias Feministas: artistas depois de 2000 e ambas integravam o ciclo Histórias das mulheres, histórias feministas.

Em 2017, a Ocupação Nise da Silveira falava sobre os aproximamentos entre arte e loucura. A Dra. Nise foi uma médica brasileira que revolucionou o tratamento de doenças psiquiátricas envolvendo ateliês de arte! Um dos casos mais emblemáticos é o de Adelina Gomes, que  antes era considerada uma pessoa agressiva e perigosa, mas, ao começar o trabalho no ateliê, tornou-se tranquila e centrada, tendo produzido mais de 17 mil obras! Atualmente, o CCBB do Rio de Janeiro recebe uma exposição em homenagem à doutora e seus “clientes”, como ela gostava de chamar aqueles que eram tratados no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro: Nise: a revolução pelo afeto.

Tire um tempinho pra ouvir: o podcast Descansa, Monalisa!, feito por estudantes de História da Arte, fez um episódio especial sobre feminismo e mulheres na arte.

Você conhece o Museu Nacional das Mulheres nas Artes? O NMWA (National Museum of Women in the Arts) fica na capital dos Estados Unidos, Washington, e é o único grande museu do mundo exclusivamente dedicado a exibir artistas mulheres! O museu aborda o desequilíbrio de gênero na história da arte e traz à tona importantes mulheres artistas do passado, além de promover mulheres artistas que estão atuando hoje!

 

REFERÊNCIAS

BOTTON, Viviane Bagiotto. Histeria, mulher e feminino. Site Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, 2020. Disponível em: https://www.filosofas.org/post/histeria-mulher-e-femenino

FERREIRA, Vivian Carla Garcia. Limiares da Loucura: corpo e insurgência feminina em prontuários de mulheres no manicômio judiciário do estado de São Paulo. UNIFESP, 2018. Disponível em: https://www.encontro2018.sp.anpuh.org/resources/anais/8/1530845220_ARQUIVO_Limiares-da-loucura-corpo-e-insurgencia-feminina.pdf

LIMA, Daniela. Camille Claudel: a quem serve a normalidade. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2015/11/03/camille-claudel-a-quem-serve-a-normalidade

MELO, A. P. B. DE. Mulheres, loucura e escrita no século XIX: um estudo sobre a obra O papel de parede amarelo de Charlotte Perkins Gilman (1892). Mundo Livre: Revista Multidisciplinar, v. 4, n. 2, p. 48-57, 13 dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.uff.br/mundolivre/article/view/39966