Foto: Roberta Amaral Foto: Roberta Amaral

Mulheres que fazem revolução com arte

Escrevendo a própria vida

Se fosse uma personagem de ficção, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) ilustraria uma daquelas trajetórias épicas marcada por tragédia, superação, sonho realizado e caminho para a felicidade não finalizado em sua plenitude. Mulher negra nascida em uma comunidade rural no interior de Minas Gerais, ela driblou o destino atávico da miséria e do analfabetismo aproveitando a oportunidade de frequentar a escola. Abandonou os estudos tão logo aprendeu a ler e a escrever, mas a paixão pela leitura estava sedimentada e a acompanharia por toda a vida.

Já tinha mais de 20 anos quando chegou à cidade de São Paulo. Para sobreviver, trabalhou como catadora de papel e empregada doméstica. Vivia na favela do Canindé quando começou a registrar as experiências de seu dia a dia. Em 1958, seu caminho cruzou com o do jornalista Audálio Dantas, que fazia no local uma reportagem para o jornal Folha da Noite. Encantado com os relatos de Carolina, no qual viu “grande lucidez crítica”, Audálio a ajudou a publicar o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Lançada em 1960, a obra foi aclamada por seu tom realista e pela opção de manter a oralidade de uma narrativa direta e crua (erros gramaticais, de grafia e acentuação da autora foram preservados).

Foto: Carolina de Jesus autografando um de seus livros. Crédito: Arquivo Nacional.

Carolina conta em seu diário a dura rotina para criar sozinha três filhos em um ambiente de carência e violência, seu relacionamento com os vizinhos e com o mundo que vislumbrava fora da favela. Quarto de Despejo já vendeu mais de um milhão de exemplares, foi traduzido para 14 idiomas e tornou-se leitura recorrente em escolas e universidades. O livro ganhou uma continuação, Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-Favelada (1961). O sucesso literário e os pagamentos de direitos recebidos, porém, foram insuficientes para que Carolina deixasse de trabalhar pesado até o fim da vida.

 

“Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo. A minha porta atualmente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus flhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

Os meus flhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus flhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.

Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horriveis”.

Trecho de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus

 

O escrutínio da alma

Nascida em uma aldeia da Ucrânia, Chaya Lispector (1920-1977) ainda não tinha completado dois anos de idade quando desembarcou no Brasil com os pais. Aqui ela passou a se chamar Clarice. A família de origem judaica fugia das guerras e das perseguições religiosas que ganhavam corpo na Europa. A menina viveu com os pais em Maceió e Recife antes de fixarem moradia no Rio de Janeiro.

Clarice formou-se advogada, ofício pelo qual nunca teve maior interesse, diferentemente do trabalho como jornalista, mais alinhado a suas atividades como tradutora e seu gosto pela escrita. Em 1943, ela publicou o primeiro título de sua aclamada trajetória, o romance Perto do Coração Selvagem, retrato íntimo da adolescência consagrado pela inventividade narrativa que transita entre a prosa e a poesia.

Clarice Lispector é uma das mais importantes escritoras do século 20. Crédito: Reprodução.

Em sua obra, sobretudo nos romances e contos, Clarice imprimiu com grande refinamento estético uma linguagem própria. Abordou com densidade questões intimistas, existenciais e psicológicas que, embora identificadas com o universo feminino, são universais. Ela também mostrou um olhar aguçado ao espelhar nas suas personagens reflexões sobre a realidade social do Brasil. Entre seus títulos mais conhecidos estão A Paixão Segundo G.H. (1964) Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) e A Hora da Estrela (1977).

 

“Espero em Deus não viver do passado. Ter sempre o tempo presente e, mesmo ilusório, ter algo no futuro. O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes de minha vida.

Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias-lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte. Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem. Eu queria que houvesse encarnação: que eu renascesse depois de morta e desse a minha alma viva para uma pessoa nova.

Eu queria, no entanto, um aviso. Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi."

Trecho da crônica As Três Experiências, de Clarice Lispector.

 

Cantos da aldeia

Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985) já tinha mais de 70 anos quando publicou seu primeiro livro, sob o pseudônimo Cora Coralina. Até então, a senhora nascida no interior de Goiás manteve seu talento literário restrito a eventuais publicações de crônicas e poesias na imprensa, sempre à sombra das lidas domésticas.

Cora escrevia desde a adolescência, inspirada pela observação do mundo que a cercava, no qual simplicidade e trabalho pesado conviviam com os escapes fabulares de histórias ancestrais repassadas de geração em geração e os elementos do rico folclore local. Ainda na juventude, Cora começou a ter seus textos publicados em jornais e revistas.

Foto: Cora Coralina escrevia desde a adolescência, mas publicou seu primeiro livro após os 70 anos de idade. Crédito: Reprodução.

Casou-se cedo e viveu por décadas em São Paulo, onde aprimorou aquele que avaliava como seu melhor talento, o de doceira. Foi com esse trabalho que sustentou quatro filhos após ficar viúva. Já com 50 anos, decidiu assumir a persona literária de Cora Coralina. Começou a datilografar seus escritos pensando em um dia reuni-los em livro. O desejo só foi se realizar em 1965, aos 75 anos, quando publicou O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais. A reedição do volume, em 1978, acabou nas mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, que fez elogios entusiasmados a Cora e ajudou a dar projeção nacional à autora.

 

“Nas palmas de tuas mãos

leio as linhas da minha vida.

Linhas cruzadas, sinuosas,

interferindo no teu destino.

Não te procurei, não me procurastes –

íamos sozinhos por estradas diferentes.

Indiferentes, cruzamos

Passavas com o fardo da vida…

Corri ao teu encontro.

Sorri. Falamos.

Esse dia foi marcado

com a pedra branca

da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos

juntos pela vida…

com a pedra branca

da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos

juntos pela vida…”

 

Poema Meu Destino, de Cora Coralina

 

Hino contra o feminicídio

A cantora e compositora mexicana Viviana “Vivir” Quintana trilha carreira impulsionada por uma música que se tornou em seu país um hino feminista contra a violência de gênero e o feminicídio: Canción sin Miedo.

Vivir Quintana apresentou a faixa em 2020, no festival musical Tiempo de Mujeres, Festival por la Igualdad, realizado na Cidade do México, em comemoração do Dia Internacional da Mulher. Antes mesmo da performance a faixa se tornou viral na internet e teve seu sucesso ampliado ao aparecer também na trilha sonora do documentário original da Netflix As Três Mortes de Marisela Escobedo, com a história de uma mãe que foi morta em meio à luta por justiça pelo assassinato de sua filha.

A cantora mexicana Vivir Quintan. Crédito: Tania Victoria Secretaría de Cultura de la Ciudad de México.

Nascida em 1985 na cidade de Francisco Madero, Vivir levou adiante o sonho de sua avó, cantora que não seguiu carreira em razão da oposição da família. Ela toca violão desde os 12 anos e fez sua formação acadêmica na Escuela Superior de Música de Saltillo. Trabalhou como professora do Ensino Médio e passou a usar a música como ferramenta pedagógica.

Após um período dividindo as salas de aula com apresentações em bares, Vivir decidiu investir de vez na carreira artística, com um repertório que incorpora música regional e música folclórica. Suas letras falam de amores e também de dores provocadas por relacionamentos abusivos e violentos. Ela é uma das fundadoras do projeto Las Hijas de Libertina Hernández, coletivo voltado a promover mulheres artistas.

 

“Que tremam o estado, os céus, as ruas

Que tremam os juízes e o judiciário

Hoje eles nos tiram a calma, mulheres

Eles semearam medo, nós criamos asas

Cada minuto de cada semana

Eles roubam nossas amigas, eles matam nossas irmãs

Eles destroem e desaparecem com seus corpos”.

 

Tradução livre de trecho da música Cancíon sin Miedo, de Vivir Quinta

 

DICAS DO LING

Assista ao videoclipe de Canción sin Miedo, de Vivir Quintana.

Com direção de Suzana Amaral, a adaptação do livro A Hora da Estrela (1985), de Clarice Lispector, é um dos filmes mais premiados do cinema brasileiro. Valeu a Marcélia Cartaxo o troféu de melhor atriz no Festival de Berlim.

Carolina de Jesus, além dos escritos que viraram livro, também foi compositora de sambas e marchinhas. Ela lançou em 1961 o LP Quarto de Despejo: Carolina Maria de Jesus Cantando suas Composições. Ouça o disco, com uma introdução comentada.

Clarice Lispector foi homenageada com um programa especial produzido pela TV Cultura em razão do centenário de nascimento da autora.

Cora Coralina é tema do especial Mulheres Admiráveis, apresentado por Astrid Fontenelle no YouTube.

Quarto de Despejo ganhou uma adaptação para o teatro, em 1961, com Ruth de Souza no papel protagonista. A atriz reprisou o papel no especial Caso Verdade, exibido pela TV Globo em 1983. O livro também inspirou o curta-metragem Carolina (2003), de Jeferson De, estrelado por Zezé Motta.

O Sarau Voador é apresentado desde março de 2018 pela atriz Deborah Finocchiaro e pelo jornalista Roger Lerina. São realizadas, em média, duas edições mensais em diferentes espaços culturais da Capital e do interior do Rio Grande do Sul. O sarau tem uma versão em podcast. Confira!

 

Referências

BBC BRASIL. Biografia e documentário tentam revelar mistérios de Clarice Lispector. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59350092

CULTURA GENIAL. Cora Coralina: 10 poemas essenciais para compreender a autora. Disponível em: https://www.culturagenial.com/cora-coralina-poemas-essenciais/

EL PAÍS. Carolina Maria de Jesus, para além dos clichês. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-10-08/carolina-maria-de-jesus-a-escritora-da-favela-que-virou-fenomeno-editorial.html

ÉPOCA. Benjamin Moser: Clarice Lispector e eu deciframos um ao outro. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/vida/noticia/2016/05/benjamin-moser-clarice-lispector-e-eu-deciframos-um-ao-outro.html

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervo de Carolina Maria de Jesus. Disponível em: https://ims.com.br/titular-colecao/carolina-maria-de-jesus/

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervo Clarice Lispector. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/

REVISTA BULA: Cora Coralina: a história da poeta que publicou seu primeiro livro aos 75 anos. Disponível em: https://www.revistabula.com/25994-cora-coralina-a-historia-da-poeta-que-publicou-seu-primeiro-livro-aos-75-anos/