“O Amor Natural” apresenta poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade
Publicado em 1992, cinco anos após a morte de Drummond (1902-1987), O Amor Natural surpreendeu aqueles que conheciam o poeta mineiro por seu lirismo romântico e sua representação por vezes abstrata do amor. O livro traz 40 poemas que tratam de sexo, desejo e prazer de forma de direta e, alguns deles, explícita. A coletânea apresenta textos, em sua maioria, inéditos que ficaram engavetados por anos e outros que tiverem circulação limitada a publicações para o público adulto e nichos artísticos e literários. Como observou o escritor Affonso Romano de Sant’Anna na apresentação do livro lançado pela editora Record: “As palavras às vezes copulam semanticamente, e o que encontramos nestas páginas é o êxtase poético de um autor que, ao mergulhar fundo em suas próprias sensações, desnuda também o leitor, que se vê frente a frente com suas próprias contradições ao pensar nos limites entre o erótico e o pornográfico, o sexo e o amor”.
Ao longo deste texto, serão reproduzidos poemas publicados em O Amor Natural.
A outra porta do prazer
“A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.
Amor não é completo se não sabe
coisas que só amor pode inventar.
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo”.
No posfácio da edição de O Amor Natural lançada pela Companhia das Letras, Mariana Quadros, doutora em teoria literária pela UFRJ com tese sobre poesia erótica de Drummond, esclarece aos que se viram surpresos pela temática do livro que desde os anos 1970 o autor vinha publicando, ainda que de forma esparsa, textos eróticos em publicações de arte e em revistas voltadas para diferentes públicos. Havia uma curiosidade a respeito desses poemas: “A edição da coletânea prometia esclarecer o tema da sexualidade em uma obra marcada, desde seu lançamento, pela angústia decorrente do ‘sequestro sexual’, na expressão de Mário de Andrade em carta de julho de 1930 ao amigo mineiro. O sexo, defende Mário, não é plenamente sublimado na obra do jovem poeta, como evidencia a proliferação das marcas do desejo insatisfeito”.
A bunda, que engraçada
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora — murmura a bunda — esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se.Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz na
carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.
Mariana Quadros observa: “desde Alguma Poesia, primeiro livro publicado por Drummond, a inquietude decorrente da repressão sexual ou da libido insaciada ganha vulto. O problema não fica restrito à coletânea de 1930. Brejo das Almas (1934) difunde a exposição dos impulsos sexuais, quase sempre não consumados. Por sua preponderância, eles se tornam símbolo privilegiado da conturbada relação do eu drummondiano com o mundo. Embora ele saiba que o ‘êxtase supremo’ pode se enredar no corpo feminino, a amante que lhe foi destinada está longe e, cruel, ri de sua sôfrega procura. Quando perto, a mulher cobiçada ignora a ‘vontade garota’ do homem ‘de voar, de amar, de ser feliz’, ‘de praticar libidinagens’. A frustração fica ainda mais aguda por estar o sujeito dividido entre os anseios de gozo e a vontade de ‘ser infeliz e rezar’, resultado da culpa ainda existente em si. Por isso, o eu é quase sempre solitário e sua poesia, ostensivamente sensual, o reflexo ora dramático ora humorístico do desejo malogrado de comunhão com o mundo e, sobretudo, com as mulheres. A ostentação dos corpos visados se calaria por algumas décadas. Mesmo quando o amor foi tema de destaque, raras vezes a descrição das formas desejadas ganhou vulto”.
O chão é cama
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
E, para repousar do amor, vamos à cama.
Alguma Poesia é reconhecido como um dos mais impactantes livros de estreia de um autor brasileiro, afirmou o poeta Diego Grando na videoaula que ministrou sobre Drummond no canal do Instituto Ling no YouTube. Nesta obra estão presentes textos escritos entre 1925 e 1930 que se tornaram clássicos, entre eles Poema de Sete Faces (“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida…”), Quadrilha (“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”) e No Meio do Caminho (“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra..”).
Nesta primeira fase de sua carreira, o poeta nascido em Itabira, na análise de Grando, apresentava como marcas a brasilidade, em sintonia com as bandeiras içadas pelo movimento modernista (manteve ao longo da vida uma forte ligação epistolar com o poeta paulista Mário de Andrade, expoente do movimento) e uma graça coloquial. A partir dos anos 1940, em obras como José e Rosa do Povo, investiu em uma abordagem social do país, falando da situação dos trabalhadores diante da expansão industrial em voga e da solidão e angústia do homem moderno. Outro recorte na sua trajetória pode ser feito nos anos 1950, quando apresentou em Claro Enigma (1951) uma série de poemas conceituais com reflexões sobre o tempo e a morte, entre outros temas.
Mulher andando nua pela casa
Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d’água.
O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade.
Pelos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
repousam de guerra. Também eu repouso.
Ainda na década de 1950, explica Mariana Quadros “as reflexões sobre a natureza do amor e os problemas da existência permeiam o lirismo, o que leva ao enfraquecimento – mas não ao fim – da descrição do sexo ou das partes da anatomia desejadas. O recurso só voltaria a ter destaque nos poemas de Boitempo, em que o ‘menino antigo’ recorda a sofreguidão com que aspirava ao sexo”.
Boitempo deu nome à trilogia memorialística que Drummond apresentou em três volumes: (In) Memória (1968), Menino Antigo (1973) e Esquecer para Lembrar (1979). A junção no título das palavras de boi e tempo faz referência à infância rural do autor. De certa forma, Drummond parecia fechar com este projeto um círculo temático, retornando ao lirismo idílico e amoroso depois de elevar a língua portuguesa a um elevado patamar de experimentação com as palavras.
No mármore de tua bunda
No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
Na contextualização de O Amor Natural junto à obra de Drummond, Mariana Quadros mostra que, em sua produção nos anos 1980, o autor passa a fazer um questionamento metafísico sobre o amor e o corpo, com nova suspensão do realismo acerca da fisiologia humana. “A pausa seria suspensa apenas fora do espaço do livro e, consequentemente, da obra tornada amplamente pública: nas revistas e edições de arte em que Drummond veiculou nos anos 1970 e 1980 alguns de seus poemas eróticos. Na maioria deles, o sexo já não parece ‘sequestrado’, uma vez que a libido se consuma e o prazer vence a culpa. Da ‘vontade interdita’ nos primeiros livros até o coito exposto nos versos eróticos, observamos um percurso culminante na reconciliação do eu drummondiano com o sexo, tornado o fundamento da poesia. Portanto, desde a década de 1970 podia-se esperar que a publicação da totalidade dos textos silenciados em vida por Carlos Drummond de Andrade revelasse o aspecto apaziguado da inscrição do desejo, quase sempre problemático na obra do autor”.
E complementa: “A edição do volume mantido na gaveta pelo poeta veio confirmar, em grande medida, a novidade prenunciada pelos textos eróticos divulgados em vida por Drummond: chama a atenção o caráter solar predominante no livro, positividade rara em uma poesia caracterizada quase sempre pela corrosão, pelo desconcerto e pela negatividade. Tal virada foi precedida pela luminosidade encontrada em alguns poemas publicados nos livros dos anos 1980. Não obstante, naqueles volumes, o espírito solar quase sempre tinha de conviver com as mais densas sombras. Em O Amor Natural, essa coexistência é bem mais rara”.
Tenho saudades de uma dama
Tenho saudades de uma dama
como jamais houve na cama
outra igual, e mais terna amante.
Não era sequer provocante.
Provocada, como reagia!
São palavras só: quente, fria.
No banheiro nos enroscávamos.
Eram flamas no preto favo,
um guaiar, um matar-morrer.
Tenho saudades de uma dama
que me passeava na medula
e atomizava os pés da cama.
Por toda a sua vida, de Itabira a Belo Horizonte e, por fim, o Rio de Janeiro, Drummond contrastou a ousadia temática e a criatividade formal de sua poesia, viajando como poucos antes dele pelos arranjos do vocabulário e da sintaxe, com uma vida banal em sua tranquilidade.
Filho de fazendeiro, nada lhe faltou na juventude. Em 1920, já morando na capital mineira, começou a publicar seus primeiros textos, no jornal Diário de Minas. Formou-se farmacêutico, mas nunca exerceu o ofício. Começou a tomar outro rumo após conhecer, em 1924, em Belo Horizonte, parte da turma que havia promovido a revolução modernista em São Paulo, em 1922, transformando o curso da literatura e das artes visuais: Tarsila do Amaral e os irmãos Mário e Oswald de Andrade. Foi na capa da A Revista de Antropofagia, porta-voz das ideias e criações do grupo, que Drummond publicou pela primeira vez o poema No Meio do Caminho, em julho de 1928.
Drummond já estava casado, desde 1925, com Dolores Dutra de Moraes, com quem teve dois filhos, Carlos Flávio, que morreu pouco após o nascimento, e Maria Julieta. Tornou-se funcionário público do governo mineiro em 1930, mesmo ano em que começou a fazer história com o livro com Alguma Poesia, em edição com apenas 500 exemplares bancada do próprio bolso. Em 1934, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro para trabalhar como chefe de gabinete do seu amigo Gustavo Capanema, governador de Minas Gerais, chamado para ser ministro da Educação do governo de Getúlio Vargas. Comunista, Drummond colocou a lealdade a Capanema acima de possíveis conflitos éticos em servir nas fileiras do ditador.
É um aspecto fascinante da biografia de Drummond essa vivência em dois mundos distintos. Cumpria religiosamente o expediente de funcionário público, de segunda a sexta, foi casado por toda a vida com a namorada da juventude e pouco viajou. Reservou para sua poesia toda a transgressão que viveu só em pensamento.
Sob o chuveiro amar
Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo — é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?
DICAS DO LING
O Amor Natural foi lançado por diferentes editoras e encontra-se fora de catálogo. Pode ser encontrado em sebos físicos e na Estante Virtual.
Carlos Drummond de Andrade foi tema de uma videoaula do poeta Diego Grando no canal do Instituto Ling no YouTube. Assista.
Assista ao documentário Drummond – Testemunho da Experiência Humana (2011).
No livro Maquinações do Mundo, José Miguel Wisnik percorre a obra de Drummond a partir de uma viagem a Itabira natal do poeta, onde, em 1942, foi instalada a Companhia Vale do Rio Doce. Wisnik espelha a história da mineração brasileira e mundial na poesia de Drummond.
O site do Instituto Moreira Salles abriga um rico acervo relacionado a Drummond, como cartas enviadas e recebidas por ele a amigos, crônicas para a imprensa, resenhas de seus livros e leitura de poesias.
Programa especial produzido pela TV Cultura presta homenagem a Drummond.
REFERÊNCIAS
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE. Site oficial com vida, obra, acervo visual, artigos, podcast e outros materiais.
Disponível em https://www.carlosdrummond.com.br/
JORNAL DA USP. Em “Alguma Poesia”, sujeito poético é chave para observar o Brasil
Disponível em https://jornal.usp.br/cultura/em-alguma-poesia-sujeito-poetico-e-chave-para-observar-o-brasil/
DAS CULTURAS. Carlos Drummond de Andrade – Poesia Erótica
Disponível em https://dasculturas.com/2017/02/05/carlos-drummond-de-andrade-poesia-erotica/
WERNECK, Humberto. Cronologia do poeta: Carlos Drummond de Andrade.
Disponível em: https://www.carlosdrummond.com.br/conteudos/visualizar/Cronologia