O Tempo e o Vento: o universo imenso de Erico Verissimo vai além da identidade gaúcha
Jornada épica
Monumento literário que renova continuamente seu fascínio junto a leitores de diferentes gerações, O Tempo e o Vento foi apresentado pelo escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) como uma trilogia, ao longo de 13 anos: O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962).
Os três livros percorrem um período de 200 anos e combinam elementos do romance histórico, da jornada épica e da crônica iluminando o caminho da família Terra Cambará. Ficção amparada em fatos e personagens reais, a saga traz episódios determinantes para a formação da identidade cultural e geográfica do Rio Grande do Sul e para a projeção política do Estado no Brasil que se moldava entre a colônia, o império e a república.
Em seu amplo painel humano, Erico Verissimo costura de forma engenhosa o regional e o universal, nos pormenores de usos e costumes locais e na representação de vidas que acabam guiadas por um turbilhão de eventos incontornáveis. Espelhado na linguagem visual, O Tempo e o Vento mostra a habilidade do autor para compor tanto os grandes planos que emolduram os movimentos externos que repercutem na fictícia Santa Fé quanto os close-ups que capturam a intensidade emocional de seus personagens em seus dramas mais íntimos.
Universo ao redor
O sucesso de O Continente e a força de seus personagens consagrados no imaginário popular deram a impressão primeira de ser esta a narrativa definidora do modo de ser gaúcho, da criação de uma mitologia própria, de como esse gaúcho se vê e de que forma é visto pelos outros.
Com a trilogia completa, Erico mostrou que sua inspiração e sua motivação para tamanha empreitada buscaram um patamar mais elevado e complexo. Se em O Continente ele teve como base de pesquisa para sua ficção livros históricos e memórias da própria família, enraizada em Cruz Alta, O Retrato e O Arquipélago começam a trazer suas impressões sobre eventos dos quais foi contemporâneo, como revoluções e guerras que convulsionaram e o Brasil e o mundo na primeira metade do século 20. Neste sentido, a força política das oligarquias gaúchas e a ascensão ao poder de Getúlio Vargas, caudilho que partiu do Rio Grande do Sul para tomar o poder no Rio de Janeiro, instaurando no país a ditadura do Estado Novo, foram particularmente impactantes para o escritor.
Arrojo formal
Dois volumes apresentam O Continente no período cronológico de 150 anos, entre 1745 e 1895. Entre seus sete capítulos, estão Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo, com os personagens mais conhecidos de O Tempo e o Vento, e O Sobrado, referência a um dos principais cenários da história. Este último capítulo transcorre de forma fragmentada entre os demais, lançando uma alternância temporal que dá forma circular à estrutura romanesca, um dos exemplos do arrojo formal de Erico Verissimo na construção deste universo particular – enriquecido ainda com diferentes pontos de vista na narração e intervenções que iluminam episódios e personagens paralelos à trama central.
A ferro e fogo
O ponto de partida da jornada que vai e vem no tempo está localizado na região dos Sete Povos das Missões, em meio às disputas territoriais entre Portugal e Espanha e ao genocídio dos povos guaranis. Filho de uma indígena que morreu no parto, o mestiço Pedro Missioneiro é criado por um padre espanhol. Dono de visões premonitórias, o rapaz, anos depois, conhece Ana Terra, filha de uma família paulista estabelecida nas terras ao sul. Do relacionamento proibido nasce Pedro Terra. O ciclo de violência e mortes faz com que Ana e seu filho rumem para Santa Fé, cidade que abriga os protagonistas de O Tempo e o Vento.
Buenas e me espalho!
Filha de Pedro Terra, Bibiana se apaixona pelo capitão Rodrigo Cambará, um forasteiro falastrão, mulherengo e destemido que irrompe em Santa Fé provocando suspiros e desafetos. Bom de copo e de briga, Rodrigo sobrevive a um tiro desferido de forma traiçoeira por um de seus inimigos, Bento Amaral, rival na disputa pelo coração de Bibiana. Rodrigo e Bibiana se casam e têm três filhos, entre eles Bolívar, um dos protagonistas no avançar da saga, assim como seus descendentes, o filho Licurgo e o neto Rodrigo.
Tempo de guerra
A vila de Santa Fé começa a se transformar em cidade e recebe novos moradores, entre eles imigrantes alemães. Os segmentos seguintes de O Continente transcorrem entre grandes e pequenos conflitos. Além da Guerra dos Farrapos, a Guerra do Paraguai também é referenciada na trama. Um ponto de grande tensão, porém, se cristaliza no front doméstico, na convivência entre Bibiana e sua nora, Luzia. As mulheres disputam o controle do sobrado da família e a criação do menino Licurgo. Adulto, Licurgo torna-se o líder político de Santa Fé e, empolgado pelos ideais republicanos que guiam o Brasil desde 1889, reacende a antiga rivalidade com a família Amaral, por sua vez engajada nas forças federalistas na revolução que opôs chimangos e maragatos, entre 1893 e 1895.
Rumo ao século 20
Também em dois volumes, O Retrato coloca O Tempo e o Vento sob transição do modo de vida rural para o urbano no Rio Grande do Sul do começo do século 20. Aqui desponta como personagem central Rodrigo Terra Cambará, filho de Licurgo.
Assim como seu bisavô aventureiro, de quem traz o nome, Rodrigo exibe o gosto pelos prazeres mundanos e está determinado a romper com o marasmo que vê em Santa Fé. Ele volta à cidade após formar-se médico em Porto Alegre, onde tomou gosto pelos confortos da metrópole. Seu olhar para a modernidade contrasta com o apego de seu irmão mais velho, Toríbio, pela vida provinciana, assim como Licurgo. Marido infiel e pai distante, Rodrigo é seduzido pela política e acompanha os movimentos beligerantes que levaram o gaúcho Getúlio Vargas à presidência do Brasil, em 1937.
Reunião de família
Com sua narrativa em três volumes, O Arquipélago encerra a jornada dos Terra Cambará com um acerto de contas afetivo. Com a deposição de Getúlio Vargas, em 1945, Rodrigo volta do Rio de Janeiro para Santa Fé, com a saúde debilitada, e reencontra seu filho Floriano, escritor que, após uma temporada nos Estados Unidos, também retorna à cidade. O filho enfrenta o pai lembrando um histórico de atitudes de Rodrigo que impactaram negativamente toda a família.
Alter ego
A estrutura narrativa de O Arquipélago destaca os relatos de Floriano, que está escrevendo a história dos Terra Cambará (é o alter ego de Erico Verissimo), e também trechos do diário de Sílvia, casada com Jango, outro filho de Rodrigo. Ela imprime o ponto de vista feminino nesta jornada patriarcal amparada por mulheres fortes. É um movimento final pontuado por lembranças, rancores, remorsos e paixões não consumadas. O livro que Floriano escreve começa exatamente como Erico dá partida ao seu épico: “Era uma noite fria de Lua cheia”.
“O Vento e o Tempo”
Com o lançamento do segundo volume de O Arquipélago, em 1962, Erico Verissimo concluiu um extenuante processo de criação. A empreitada teve um custo físico, pois parte da história foi escrita com o autor convalescendo de um infarto sofrido em março de 1961, pouco antes da publicação do primeiro tomo. A agonia do personagem Rodrigo Terra Cambará traz parte desta experiência pessoal do autor.
Erico começou a planejar O Tempo e o Vento em 1939, como um romance intitulado Caravana, que abordaria a história do Rio Grande do Sul entre 1740 e 1940, também com uma missão jesuítica no primeiro cenário. Ao longo dos anos, a ideia da saga familiar foi lapidada e ampliada. Até pouco antes da publicação de O Continente, o conjunto chamava-se O Vento e o Tempo.
Pilares da casa
Embora O Tempo e o Vento destaque a típica sociedade patriarcal, com os homens ditando os rumos da família e dos eventos, a força das mulheres é um alicerce robusto na trajetória dos Terra Cambará. Em O Arquipélago, o escritor Floriano trava uma discussão com seu pai, Rodrigo, que enaltece o papel dos homens como guerreiros. Diz o filho, citando familiares como Ana Terra e Bibiana: “Elas eram o chão firme que os heróis pisavam. A casa que os abrigava quando eles voltavam da guerra. O fogo que os aquecia. As mãos que lhe davam de comer e de beber. Elas eram o elemento vertical e permanente da raça.”
Mulheres de fibra
Sobre a representação feminina em O Tempo e o Vento, Regina Zilberman, doutora em Letras e professora da PUCRS, afirma no prefácio do primeiro volume de O Continente (edição da Companhia das Letras): “As duas histórias que embasam a trama de O Continente são lideradas por homens que lutam nas guerras e combatem o poder até se tornarem parte dele. Suas ações, contudo, não detêm o comando sobre o enredo do livro, dominado pelas mulheres, destacando-se três delas: Ana Terra, Bibiana Cambará e Luzia Silva. Por trás dessas senhoras estão várias outras, enlutadas por efeito das guerras que devastam a região e devoram seus homens (...) Não se trata apenas de fortalecer a voz feminina, mas de narrar um romance de conquistas e instalação de uma sociedade machista do ângulo dos perdedores, as mulheres que veem seus filhos e maridos partirem para a luta que os consumirá; que se dobram aos desígnios dos mais fortes; que, apesar de fracas, resistem e garantem a subsistência e o futuro de seus descendentes. Ana e Bibiana simbolizam a persistência feminina, razão por que se convertem não apenas em ícones da história narrada, mas também em alegoria da visão de mundo adotada por Erico Verissimo. Pacifista e desiludido diante da trajetória dos grupos dominantes que fizeram a história do Rio Grande do Sul e do Brasil, o escritor confere às mulheres a função de representar seu posicionamento”.
Das páginas para as telas
O tom de aventura épica que conduz O Continente fez deste livro o mais popular da trilogia, em especial pelos personagens Ana Terra e Capitão Rodrigo. Isto explica por que estes segmentos costumam ser os mais buscados nas adaptações para o cinema e televisão.
Com direção de Walter George Durst e Cassiano Gabus Mendes, o longa-metragem O Sobrado apresentou em 1956 a primeira adaptação audiovisual de O Tempo e o Vento. A trama recorta do livro a luta de Licurgo (Fernando Baleroni) para proteger o casarão dos Terra Cambará do cerco das tropas comandadas pela inimiga família Amaral durante a Revolução Federalista.
Em 1967, estreou na TV Excelsior a telenovela O Tempo e o Vento, com 210 capítulos e três partes: A Fonte, Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo. No elenco, destaque para Geórgia Gomide (Ana Terra), Carlos Zara (Capitão Rodrigo) e Maria Estela (Bibiana).
Dois filmes em sequência retomaram a obra no cinema: Um Certo Capitão Rodrigo (1971), dirigido por Anselmo Duarte, com Francisco di Franco vivendo o personagem, e Elza de Castro como Bibiana. Ana Terra (1972), de Durval Garcia, foi estrelado por Rossana Ghessa.
A minissérie O Tempo e o Vento estreou na Globo em 1985, com direção de Paulo José e trilha sonora assinada por Tom Jobim. Encenou em 25 capítulos as histórias Ana Terra (com Glória Pires), Um Certo Capitão Rodrigo (estrelando Tarcísio Meira e Louise Cardoso no papel de Bibiana), A Teiniaguá (Lilian Lemmertz e Carla Camuratti encarnando Bibiana e Luzia) e O Sobrado (com Lélia Abramo vivendo a idosa Bibiana).
A mais recente adaptação de O Tempo e o Vento foi dirigida por Jayme Monjardim. Estreou como longa-metragem, exibido nos cinemas em 2013, e ganhou versão ampliada na minissérie da Globo, em 2014. Em cena, o período de 150 anos narrado em O Continente. O elenco conta com Cleo Pires (Ana Terra) e Thiago Lacerda (Capitão Rodrigo), além de Marjorie Estiano e Fernanda Montenegro vivendo Bibiana em diferentes fases.
DICAS DO LING
A minissérie de 1985 e o longa-metragem de 2013 podem ser assistidos por assinantes da plataforma Globoplay.
Memórias de Escritor, especial da RBS TV exibido em 2005, em razão do centenário de Erico Verissimo, combina documentário e dramaturgia para contar a trajetória do autor. Um dos narradores é Capitão Rodrigo, com o ator Tarcísio Filho vivendo o personagem imortalizado por seu pai, Tarcísio Meira, na minissérie de 1985.
O webdocumentário Os 50 Anos de o Tempo e o Vento apresenta as influências de Erico Verissimo na construção da trilogia.
Documentário O Tempo de Erico passa em revista a vida e a obra do autor, com depoimentos de professores de literatura e escritores.
Uma compilação da trilha sonora da minissérie de 1985 está disponível no Spotify, com músicas interpretadas por nomes como Tom Jobim, Renato Borghetti e Kleiton e Kledir.
REFERÊNCIAS
BEDUKA. Resumo e análise de O Tempo e o Vento.
Disponível em: https://beduka.com/blog/materias/literatura/resumo-do-livro-o-tempo-e-o-vento/
ZILBERMAN, Regina. Erico Verissimo: Memória, História e Tempo Recuperado.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13502/15320
ZILBERMAN, Regina. O Tempo e Vento: História, Mito, Literatura
Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/17457/11192
ZERO HORA. O Continente: a parte mais popular e com os personagens mais conhecidos do conjunto criado por Erico Verissimo.