Quando as histórias de Antígona, Alice no País das Maravilhas, Joana d'Arc e Anna O. se encontram
O que essas quatro mulheres têm em comum?
Mais de 2,3 mil anos separam a criação das personagens fictícias Antígona, de Sófocles, e Alice, de Lewis Carroll, que desbrava o País das Maravilhas. Enquanto a primeira pagou com a própria vida pela audácia, a astúcia e a coragem de transgredir as regras na Grécia Antiga, a segunda, ainda criança, ousou questionar as convenções e as regras de um mundo ao avesso, paralelo à era vitoriana. Ambas tiveram coragem para questionar as leis vigentes e confrontá-las, na luta pelo que acreditavam ser justo e importante.
Outras duas mulheres que representam a transgressão em suas épocas, mas que existiram de fato e deixaram as suas marcas gravadas na história, são Joana d'Arc, a jovem camponesa analfabeta que mudou o rumo da Guerra dos Cem Anos, redesenhando o papel da França no século 15; e a assistente social e escritora judia Bertha Pappenheim, que apesar de ter liderado movimentos sociais de direitos humanos, civis e políticos em defesa das mulheres no século 19, é conhecida pelo pseudônimo de Anna O., paciente pioneira da psicanálise ao inspirar estudo sobre a histeria.
O que essas quatro figuras têm em comum? São heroínas. São mulheres míticas que denunciam a opressão e a violência, em diferentes momentos históricos, mesmo com poucos recursos para se manifestar. São figuras que se insurgem contra uma sociedade que as oprime. Quando lutam por aquilo que acreditam ser importante, elas representam a possibilidade de mudança e o rompimento às amarras de submissão e silenciamento impostos ao público feminino ao longo dos anos.
No material que preparamos abaixo, conheça a trajetória de cada uma delas.
Antígona, a mulher que desafiou o Estado para obedecer aos mandamentos divinos
Representada pela primeira vez por volta de 440 a.C., em Atenas, Antígona é uma das tragédias completas de Sófocles, um dos mais importantes escritores e dramaturgos da Grécia Antiga. O texto, um dos mais recriados da literatura universal e que se transformou na peça teatral mais representada no mundo, faz parte da trilogia tebana do autor, que ainda inclui outros dois títulos, Édipo Rei e Édipo em Colono.
A protagonista que dá nome à terceira parte da obra é filha de Édipo, rei de Tebas, que, sem saber, matou seu pai e se casou com sua própria mãe, Jocasta. Nas tragédias que antecedem Antígona, tudo isso já havia acontecido, resultando no suicídio de Jocasta e no exílio e morte de Édipo, que fura os próprios olhos.
A peça dedicada à Antígona dá sequência aos infortúnios vividos pela personagem principal ao lado de sua irmã, Ismênia. Após o falecimento do pai, elas presenciam também a morte de seus dois irmãos, Etéocles e Polinice, que derramam o sangue um do outro na disputa pelo trono herdado. A condição para a sucessão era que ambos governassem alternadamente, mas Etéocles se recusou a ceder o poder ao irmão, o que levou Polinice a formar um exército, dando início a uma guerra.
As duas irmãs, então, veem o trono ser tomado por seu tio Creonte que, em sua primeira deliberação, decide não sepultar o corpo de Polinice, para que as aves de rapina e hienas o devorem, já que ele foi considerado um traidor. É aí que começa a luta de Antígona, que não aceita a determinação do novo rei, porque a considera arbitrária e desrespeitosa às leis naturais mais antigas que estabeleciam que todo homem seja sepultado para evitar que sua alma não tenha descanso. Com essa preocupação e a crença de que o irmão merece um enterro com dignidade, ela faz de tudo para honrá-lo, colocando em risco a própria vida, ao jogar terra sobre o corpo de Etéocles.
Escrita em uma época em que o teatro se firmava com um papel muito importante dentro da democracia, Antígona é a tragédia da boa filha que morreu por obedecer aos mandamentos divinos em contraposição à vontade despótica de um tirano. É a história de uma jovem mulher que desafia o Estado, alegando agir em nome de leis naturais que precederiam os poderes do soberano, mesmo que isso implicasse em uma sentença fatal. É um texto marcado pelo dilema moral da prevalência da lei dos homens sobre a lei dos deuses e, acima de tudo, sobre uma mulher que teve a coragem de questionar uma ordem imposta por um governante.
Alice, a menina questionadora
Publicada em 1865, Alice no País das Maravilhas é a obra máxima de Lewis Carroll, pseudônimo com o qual o matemático e reverendo britânico Charles Lutwidge Dodgson assinava suas histórias. A narrativa, que de certa forma inaugurou a literatura infantil - conceito que, naquela época, ainda não estava definido - conquistou públicos de todas as gerações, tornando-se um fenômeno entre as crianças e um livro que ajuda os adultos a voltarem à infância através do seu universo fantasioso e nonsense.
A publicação também é uma das mais estudadas da literatura universal, intrigando leitores especializados e estudiosos a decodificar as diversas camadas de sentido que existem no texto de Carroll, que traz inúmeras referências e críticas sobre a cultura vitoriana, período em que a trama se passa. Além disso, foi transformada em incontáveis peças de teatro, filmes e livros secundários que remontam a história de sua personagem principal. Mas nada substitui a leitura do original que apresenta célebres personagens como a própria Alice, além do Coelho Branco, o Chapeleiro Louco, o Gato de Cheshire e a Rainha de Copas.
A obra destaca a aventura de uma menina com cerca de 7 anos que pertence à classe média da Inglaterra do século 19. Sua motivação é a curiosidade. É isso que faz Alice seguir um coelho branco em um mergulho que a leva a um novo mundo, repleto de animais e objetos antropomórficos, que falam e se comportam como seres humanos. Ela encolhe e cresce, literalmente, para adentrar nesse universo paralelo, desprovido das leis que regem o mundo ao qual ela pertence.
Logo no começo dessa jornada, Alice encontra uma lagarta fumando narguilé, que questiona quem ela é - uma pergunta que a personagem principal já nem consegue mais responder após todas as transformações que sofreu durante o dia. Em seu caminho, ainda conhece um gato sorridente que aponta a direção para a casa do Chapeleiro, avisando que todos ali são loucos.
É lá que ela esbarra em duas personagens tomando chá e se junta a elas. Nesse episódio, percebe a diferença das regras da boa educação entre os dois mundos e descobre seres que não estão dispostos a debater, argumentar e contra-argumentar. Contrariada com aquela situação, ela foge e acaba chegando a um jardim onde conhece o Rei e a Rainha de Copas, que a convidam para um jogo de croquet, muito diferente daquele que a menina conhecia, porque desrespeita as regras habituais das partidas na Inglaterra.
Depois de uma certa convivência com os novos conhecidos, Alice é chamada para um julgamento, cujos juiz e jurados parecem desconhecer os fundamentos. A Rainha de Copas, que costuma mandar cortar a cabeça de quem a contraria, pede a condenação da menina antes mesmo que as provas possam ser analisadas. Um episódio que faz, de certa forma, uma sátira ao sistema judicial.
Nas últimas páginas da trama, Alice finalmente se revolta e acusa os soldados de serem um mero baralho de cartas. De repente, a menina acorda com a cabeça no colo de sua irmã e percebe que tudo foi apenas um sonho. É nessa cena que antecede o final que aparece um dos momentos mais importantes da obra: o ato de rebeldia de Alice, que se recusa a cumprir a ordem da rainha. No País das Maravilhas, ela se confronta com o absurdo e, a partir disso, se transforma, questionando tudo o que aprendeu até ali e quem ela realmente é.
Joana d'Arc, a jovem camponesa que mudou o rumo de uma guerra
Nascida em 1412, em uma família modesta de camponeses que moravam em Domrémy, na França, Joana d'Arc cresceu afirmando que ouvia vozes, desde os seus 13 anos de idade, e que suas ações eram guiadas por Santa Catarina, Santa Margarida e São Miguel. Foi a partir das determinações deles que, aos 17, a jovem religiosa deixou sua aldeia com o propósito de acabar com a Guerra dos Cem Anos, no qual seu país se debatia contra os ingleses, e permitir a coroação do legítimo herdeiro do trono, Carlos VII.
Analfabeta e sem nenhum conhecimento militar, a destemida e astuciosa Joana convenceu, na base da fé, um pequeno grupo de soldados a acompanhá-la inicialmente. Depois de uma conferência com o príncipe, conquistou seu próprio exército, com cerca de 7 mil homens, e a autorização real para marchar até Orléans e lutar. Em maio de 1429, a jovem conseguiu, em apenas quatro dias, suspender o cerco à cidade que estava há seis meses sitiada, dando início a uma série de vitórias.
Em vez de um machado ou uma espada, ela empunhava um estandarte branco com a figura de Deus ladeada por dois anjos. Guiada pela fé e usando cabelos curtos e roupas de homem, ela foi a inspiração que faltava aos soldados franceses, alterando o rumo da guerra a favor da França.
Apesar do sucesso na batalha, Joana foi capturada, cerca de um ano depois, por soldados franceses aliados da Inglaterra e vendida ao país inimigo. Lá, foi acusada de ser bruxa, julgada pela Igreja e condenada por heresia, o que a levou a ser morta, em 1431, queimada em uma fogueira - um ato feito pelos ingleses para apagar de vez com a sua existência, mas que só serviu para aumentar o mito de Joana d'Arc.
Quase um século depois, o julgamento da heroína populista finalmente foi revisto e anulado, e ela foi declarada inocente da acusação de heresia. Foi finalmente beatificada em 1909 e, em 1920, foi canonizada na Basílica de São Pedro em Roma. Anos após ser taxada de bruxa, a jovem mulher tornou-se santa.
Anna O., a ativista que lutou pelos direitos civis e religiosos das mulheres judias
Apesar de ser conhecida como a mulher histérica mais famosa da história, Anna O. não foi apenas a responsável pelo célebre caso que marcou o surgimento dos princípios básicos da psicanálise. A figura principal dos Estudos sobre a Histeria, obra essencial para a compreensão da mente humana escrita por Sigmund Freud e Josef Breuer em 1895, é um pseudônimo usado pelos pesquisadores para proteger a identidade de Bertha Pappenheim, assistente social e escritora que liderou movimentos de direitos humanos, civis e políticos em defesa das mulheres.
A jovem recebeu o diagnóstico de que sofria de histeria com apenas 21 anos, após perder seu pai para uma doença terminal. A morte dele, somada a outras tensões de sua vida pessoal, desencadearam nela uma série de sintomas, como depressão, afasia, impossibilidade de ler, amnésia, paralisia e insensibilidade corporal, que foram tratados e amplamente descritos por Breuer.
Vinda de uma família judia ortodoxa que vivia em Viena, na Áustria, ela tinha tudo para ser uma típica mulher europeia do século 19, com uma vida extremamente controlada por seus pais. Era, no entanto, extremamente culta, plurilíngue e uma pessoa incansável e destemida, que lutou pelas causas que acreditava. Após superar a pior parte de seu tratamento, ela passou a desempenhar um papel ativo na esfera pública, principalmente ao se mudar, anos depois, para Frankfurt, onde foi reconhecida como a primeira assistente social da Alemanha.
Lá, criou duas entidades importantes para o público feminino: a Weibliche Fürsorge - Organização de Assistência à Mulher, que oferecia ajuda e abrigo a mães solteiras e seus filhos bem como a jovens resgatadas da prostituição; e a Liga de Mulheres Judias, a primeira instituição judaica a lutar pelos direitos desse público.
Apesar dos desafios impostos na época, Bertha costumava viajar pelo Leste Europeu oferecendo ajuda a senhoras, adultas e jovens em situação de miséria e desamparo. Também foi responsável por diversas traduções e pela elaboração de artigos e contos que retratavam todos esses assuntos vivenciados por ela. Foi uma escritora bastante respeitada ainda em vida, tendo seus textos publicados em diversas revistas e jornais da época, exercendo grande influência sobre seus leitores e, sobretudo, leitoras.
DICAS DO LING
Além das inúmeras adaptações literárias e para o teatro, Antígona ganhou uma versão para o cinema grego, em 1961, sob roteiro e direção de Yorgos Javellas. O filme completo está disponível no YouTube, com legendas em português.
Há diversas edições de Alice no País das Maravilhas disponíveis no Brasil, mas vale a pena conferir algumas das publicações disponíveis com as ilustrações originais de John Tenniel. O artista, considerado um dos maiores ilustradores do século 19, foi convidado por Lewis Carroll para criar os primeiros desenhos e esboços sobre a obra. Uma das versões mais completas e elogiadas é a edição comentada, publicada pela editora Zahar, que pode ser adquirida na Amazon e em diversos sebos online.
O diretor de cinema francês Robert Bresson reconstruiu o julgamento e execução de Joana d'Arc no filme O Processo de Joana d’Arc, de 1962. Considerada a mais genial e fascinante versão cinematográfica do mito da heroína francesa, a obra com base nos originais dos autos do processo de condenação está disponível para assinantes nas plataformas MUBI e Lumine. O roteiro do filme também foi disponibilizado em livro, em edição da editora É Realizações.
No livro Estudos sobre a Histeria, Josef Breuer descreveu a terapia completa até a cura de Anna O. A obra foi lançada no Brasil pela Companhia das Letras e pode ser adquirida em diversas livrarias online, nas versões capa dura e Kindle.
REFERÊNCIAS
ALVES, Júlia Maria. História da Psicanálise: Quem foi Anna O.? Diálogo Espaço de Psicologia. Disponível em https://www.dialogopsi.com.br/blog/historia-da-psicanalise-anna-o/
BBC NEWS. Por que Antígona ainda é a peça de teatro mais representada do mundo 2,5 mil anos após sua estreia. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54841825
DREYER, Carl Theodor. A Paixão de Joana d'Arc. Filme disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cmWZLtDsOOs
MARCELLO, Carolina. Alice no País das Maravilhas: resumo e análise do livro. Site Cultura Genial. Disponível em https://www.culturagenial.com/livro-alice-no-pais-das-maravilhas-lewis-carroll/
PAVAN, Cláudia Fernanda. Tradução de textos selecionados da obra de Bertha Pappenheim. Universidade Federal de Santa Catarina, 2020. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/73270
PLITT, Laura. O que fez Joana d’Arc para mudar rumo de Guerra dos 100 Anos e sorte da França antes de morrer na fogueira. Site BBC News Mundo. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/geral-54745861
SILVA, Jeane Félix. A tragédia de Antígona sob a ótica de gênero. Revista Ártemis, Vol 1. Universidade Federal da Paraíba, 2004. Disponível em: https://docplayer.com.br/47641376-A-tragedia-de-antigona-sob-a-otica-de-genero.html
SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Tradução do grego e apresentações de Mário da Gama Kury. Editora Zahar. Apple Books.
TAVARES, Julinan. Joana d'Arc. A vitória por trás do mito da donzela de aço. Site Aventuras na História. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-a-morte-de-joana-d-arc-a-donzela-de-aco.phtml
UNIVESP TV. Literatura Fundamental 80: Alice - Lewis Carroll - Sandra Vasconcellos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zSAyjwWT384