O Sertão de João Guimarães Rosa
“Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.”
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, página 293.
A OBRA
Grande Sertão: Veredas um dos maiores romances da literatura brasileira, não apenas em razão de sua extensão, mas também pela inovação linguística, sendo o único romance de João Guimarães Rosa. A escrita do texto oscila de forma autônoma entre dialeto regional e criações arbitrárias, afastando-se da norma culta. Guimarães Rosa desafiou os leitores com um belíssimo texto onde apresenta a língua materna, que pode transformar-se com as nuances dos dialetos dentro de um mesmo território. Publicado em 1956, o romance é uma epopeia e chama a atenção logo no início pela sua dimensão com as mais de 600 páginas, a ausência de capítulos, o cruzamento de elementos da realidade histórico-social brasileira e a presença da transcrição oral.
A história acontece no estado de Minas Gerais e caminha pelos estados próximos, como Bahia e Goiás. Narrada em primeira pessoa pelo herói da obra, o ex-jagunço Riobaldo, que dialoga sobre sua vida com um interlocutor que aparece de forma indireta na obra. Riobaldo, agora na condição de fazendeiro, relembra suas lutas, seus medos e o amor reprimido por seu amigo Diadorim. No enredo de suas histórias vai apresentar o sertão a partir do ponto de vista de um jagunço que segue um código de ética específico da sua realidade.
O começo da narrativa não conta com uma explicação prévia, lançando o leitor em um relato corrido de Riobaldo sobre os fatos de sua vida, reflexões e inquietações. Tudo isso surge de forma desalinhada e até mesmo desconexa, mas já nesse começo nosso jagunço narrador vai apresentar os temas que serão discutidos durante o texto, com a caracterização do bem e do mal, das figuras de deus e do diabo e os primórdios da humanidade.
Conta sobre uma figura muito importante que ele conheceu ainda na infância, Reinaldo, um menino por quem Riobaldo nutria grande admiração e afeto. Ainda na juventude, sua mãe veio a falecer e ele foi morar com o padrinho, que o direciona a estudar e, em pouco tempo, começa a dar aulas para um fazendeiro da região, chamado Zé Bebelo. Zé estava interessado em colocar fim nos jagunços e convida Riobaldo para seu bando. Após sua primeira disputa, Riobaldo decide desertar e mudar de grupo, quando então reencontra o amigo Reinaldo. A história segue entre batalhas, casos amorosos e desentendimentos, fortalecendo a amizade entre Riobaldo e Reinaldo, a ponto do amigo lhe confidenciar um segredo: seu nome verdadeiro é Diadorim. Neste ponto a narrativa já está mais direcionada, embora não se desenvolva de forma linear. O leitor começa de fato a acompanhar a trajetória, narrada com um misto de autorreflexão do jagunço, descrevendo os personagens, a geografia física do sertão, as lutas entre bandos, a morte do chefe dos jagunços, Joca Ramiro, e as dificuldades do amor por Diadorim, até sua mudança de vida.
O AUTOR
O médico e diplomata João Guimarães Rosa foi também contista, novelista e romancista. Nascido em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, pequena cidade do interior de Minas Gerais, Guimarães Rosa foi autodidata nos estudos de línguas desde a infância. Aos 9 anos já possuía conhecimentos em francês, holandês e inglês, e sua paixão não parou por aí.
No ano de 1930, formou-se em medicina na Faculdade de Minas Gerais, chegando a exercer a profissão e servir como médico na Revolução Constitucionalista em 1932. Entretanto, um forte desejo de viajar o levou a tornar-se diplomata no serviço de relações exteriores do Brasil em 1934. Por ocasião do início da 2° Guerra Mundial, auxiliou na fuga de judeus perseguidos pelo nazismo, junto de sua futura esposa e segunda mulher, Aracy Moebius de Carvalho, chegando a ficar confinado na Alemanha quando o Brasil rompeu com o país e uniu-se aos aliados em 1942. Suas atitudes foram reconhecidas e homenageadas com a mais alta distinção oferecida a estrangeiros pelo governo Israelense, em 1985.
Guimarães Rosa chegou a participar de um concurso ao Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, com uma coletânea de poemas chamada "Magma", que lhe rendeu o primeiro lugar e que seria publicada somente postumamente. Também publicou diversos contos em revistas, gênero que esteve mais presente em sua obra e que resultaria no seu primeiro livro, “Sagarana”, uma coletânea de contos ambientados no sertão e publicado em 1946.
Outra coletânea de contos, “Corpo de Baile”, organizada em sete partes, seria lançada somente dez anos depois da publicação anterior, em 1956, no mesmo ano de lançamento de “Grande Sertão: Veredas”.
A contribuição de Guimarães Rosa para a literatura brasileira é fonte inesgotável de estudos e de alegrias aos seus leitores. Ele trouxe o registro do sertão para o mundo, a realidade e a poesia de um Brasil distante de muitos. Grande Sertão: Veredas foi traduzido para o inglês, alemão, francês, espanhol e italiano. Um bonito paralelo com o gosto por idiomas que o acompanhou desde menino.
Em 1963, o autor foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras, mas foi adiando sua posse o quanto pôde, pois temia ter um mau-súbito por conta da emoção que sentiria na cerimônia de ingresso. Somente quatro anos mais tarde assumiria a cadeira 2, de João Neves da Fontoura, que fora Ministro do Exterior e com quem Guimarães Rosa viria a trabalhar na carreira diplomática, criando um bonito laço de amizade. Enfim tomou posse em 16 de novembro de 1967, falecendo três dias depois, aos 59 anos de idade. Carlos Drummond de Andrade, diante da emoção da perda de um amigo, cuja trajetória de vida foi notoriamente fantástica e exemplar, fez um poema com um questionamento muito pertinente: será que Guimarães Rosa realmente existiu?
A última frase de seu discurso de posse na ABL não poderia resumir de forma mais completa seus valores, crenças e sentimentos, ao mesmo tempo consciente da sua entrega, em uma bonita despedida: “Ministro, está aqui CORDISBURGO.”
CURIOSIDADES
Segundo um colega da turma de medicina, Dr. Ismael de Faria, no velório de um outro colega, em 1926, Guimarães Rosa teria dito a famosa frase: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", repetida e eternizada 41 anos depois na ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
O clássico Grande Sertão: Veredas já foi adaptado para o cinema e para a televisão. No cinema, o filme estreou em 1965, dirigido por Renato e Geraldo Santos Pereira. Na televisão foi apresentado como minissérie pela Rede Globo em 1985, tendo no elenco nomes como Tony Ramos, Bruna Lombardi, Yoná Magalhães e Tarcísio Meira. Você pode assistir ao filme no Youtube! Saiba mais sobre a série no site Memória Globo!
O autor tem um museu para chamar de seu! O Museu Casa Guimarães Rosa está instalado na casa onde o escritor nasceu e passou seus primeiros nove anos de vida, na cidade de Cordisburgo.
DICAS DO LING
No vídeo Novas Veredas: Guimarães explica 'Grande sertão' você pode conferir o único registro audiovisual do autor falando sobre sua obra. O registro é trecho de uma entrevista concedida pelo escritor para a TV alemã em 1962 e faz parte do documentário “Outro Sertão”, dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela.
Que tal escutar uma aconchegante leitura de um trecho da obra Grande Sertão: Veredas.
O músico Paulo Freire criou o álbum “Rio Abaixo” fazendo referência a trilha sonora da literatura do romancista.
Nossa convidada, Kathrin Rosenfield apresenta uma ótima resenha sobre a obra, intitulada “A viagem e o nada”.
PRÊMIOS
Academia Brasileira de Letras de 1936 conferido ao livro de poesia “Magma”
Prêmio Felipe d'Oliveira pelo livro Sagarana (1946);
Grande sertão: Veredas recebeu o Prêmio Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro;
Prêmio Carmen Dolores Barbosa (1956); e o Prêmio Paula Brito (1957); Primeiras estórias recebeu o Prêmio do PEN Clube do Brasil (1963).
REFERÊNCIAS
Análise: "Grande Sertão: Veredas" nunca termina. Folha de S. Paulo, Ilustra. São Paulo, 2006. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1505200613.htm>
Biografia: João Guimarães Rosa. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academicos/joao-guimaraes-rosa/biografia>
‘Grande Sertão: Veredas’: aos 65 anos, a obra segue repleta de enigmas. CNN Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/2021/07/16/grande-sertao-veredas-aos-65-anos-obra-segue-repleta-de-enigmas>
Resumo Biográfico e Bibliográfico: Guimarães Rosa. UFRGS: Blog da Psicologia da Educação. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/psicoeduc/chasqueweb/literatura/guimaraes-rosa2.htm>
SOARES, Claudia Campos. Grande Sertão: Veredas: a crítica revisitada. Letras de hoje, Porto Alegre - RS, v. 47, n. 2, p. 136-145, abr./jun. 2012. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/11310>