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Para James Baldwin, somos terra estranha para o outro

 

“Os rostos de pessoas estranhas não tinham segredos, pois a imaginação não os envolvia em nenhum mistério. Mas o rosto de quem se ama é desconhecido exatamente por estar envolto em uma parte grande de nós mesmos. É um mistério que contém, como todo mistério, a possibilidade do sofrimento.” (trecho da página 204 de Terra Estranha)

 

Terra Estranha se passa em três cenários bem distintos entre si: o Harlem, o Greenwich Village (ambos bairros de Nova York) e a França. O romance conta a história de um pequeno grupo de amigos e fala sobre paixões — sexuais, raciais, políticas, artísticas — e impressiona por sua intensidade emocional e sensual ao retratar homens e mulheres, negros e brancos, despidos de suas máscaras de gênero e raça pelo amor e pelo ódio, os sentimentos mais elementares e sublimes que temos. O livro é ambientado nos anos 1950, mostrando o melhor e o pior da América liberal.

 

Foto: Exemplar de Terra Estranha, da Editora Companhia das Letras.

 

O LIVRO

De uma maneira mais sutil do que as ações de seus personagens deixam aparecer, o livro é um tratado sobre o isolamento, a comunicação e a compreensão. O que o título original (Another Country) nos suscita é que cada um de nós é mais que uma ilha: somos países separados e cercados uns pelos outros. Baldwin sugere que os seres humanos são isolados uns do outros por seu gênero, raça, cultura e nacionalidade e não só por uma solidão existencial inerente à condição humana. Somos terra estranha para o outro. E para que o outro alcance meu país ou para que eu conheça a terra estranha dele é necessário um grande esforço.

O romance pode ser dividido em três partes, sendo Rufus Scott o protagonista da primeira parte e o fio que liga todos os outros personagens da trama. Rufus é um homem negro, nascido no Harlem, que havia sido um músico de jazz famoso, mas que não estava vivendo seus melhores dias. Conhece Leona, uma mulher branca, e os dois começam um relacionamento que, devido às diferenças raciais, acaba tornando-se destrutivo para ambos.

Outro personagem que se destaca é a irmã mais nova de Rufus, Ida Scott, uma mulher negra que aspira ser cantora e que, após a morte do irmão, se vê cercada pelos amigos brancos dele: o casal Cass e Richard, ela dona de casa, ele escritor recém-publicado; Vivaldo, aspirante a escritor; e Eric, ator que passou um tempo na França para se recuperar de um coração partido.

O livro mostra diferentes relações amorosas, não necessariamente entre uma mulher e um homem; tratando também de homens que sentem atração por outros homens — tema que aparece em outros livros de Baldwin. O afeto atravessa todos nós. E cada personagem está em busca de amor, seja do outro ou o seu próprio. É através de cada um deles que podemos conhecer a mentalidade da época, seja nos seus discursos liberais ou conservadores, muitas vezes carregados de homofobia e racismo.

“Os negros americanos, segundo o autor, não desejam vingança.  A relação de brancos e negros é, acima de tudo, ''uma relação de sangue, talvez a realidade mais profunda da experiência americana' ”. (trecho extraído do review feito pela Revista New Yorker)

 

A questão racial perpassa todo o romance, seja nos envolvimentos amorosos ou de amizade. É através de Ida e Rufus que, de maneiras diferentes, percebemos o quanto o racismo afeta a saúde mental da população negra.

Ida Scott é o personagem com quem Baldwin parece mais preocupado. Primeiro, ela aparece apenas como a irmã mais nova de Rufus e depois vai transformando-se numa pessoa que está sofrendo tanto que precisa causar dor no outro, no caso esse outro são os amigos de seu irmão. Segundo a historiadora literária Trudier Harris, Rufus torna-se uma espécie de Polinices, enquanto Ida age como Antígona: ela precisa garantir a morte pacífica de seu irmão, fazendo com que aqueles que lhe eram mais próximos se lembrem dele, mesmo que eles não tenham dado a devida atenção a Rufus (p.101).

“Mesmo quando ela se mostrava amistosa, algo em seu comportamento e em sua voz carregava um alerta; ela estava sempre à espera do insulto velado, da sugestão lasciva. Havia bons motivos para isso; ela não estava fantasiando nem se mostrando difícil. Era assim que o mundo tratava mulheres de má reputação, e toda menina negra já nascia com má reputação” (trecho da página 173).

Nós só conhecemos Ida através de suas falas, mas não a conhecemos realmente. Sabemos como ela se veste, o efeito que ela causa nas pessoas, mas até o último minuto apenas especulamos o que realmente a motiva. Ainda segundo Harris, os personagens brancos do livro precisam — assim como os leitores — se esforçar para conhecer Ida, afinal, para Baldwin, a responsabilidade pela crueldade da situação racial na América é dos brancos. Eles precisam estender a mão para aquele outro país e compreender Ida, para que ela possa, assim, perdoá-los e compreendê-los. Só através deste grande esforço é possível construir afetos.

 

O AUTOR

James Baldwin nasceu no dia 2 de agosto de 1924 no Harlem, em Nova York. Sua família era muito religiosa e pobre – ele e seus oito irmãos foram criados pela mãe e o padrasto, frequentando os cultos da Igreja Pentecostal. Seu padrasto era um pastor muito rígido e a criação fez com que James se tornasse, entre os 14 e 17 anos, pastor mirim na Assembleia Pentecostal de Fireside.

Baldwin desde cedo demonstrou talento para a escrita e foi estimulado por seus professores a criar peças de teatro. Estudou na Public School 24 e depois na Douglas Junior High School, onde teve aulas de poesia com o poeta Countee Cullen, importante figura do movimento de Renascimento do Harlem — período entre os anos 1920 e 1930 marcado por uma onda de produção intelectual, social e artística e o surgimento de novas expressões culturais afro-americanas nos Estados Unidos. Motivado pelos professores Cullen e Herman Porter, ele ingressa na renomada DeWitt Clinton High School, localizada no Bronx. Nessa fase, ele entra em contato com outros temas e leituras e passa a questionar sua relação com a religião, sua sexualidade e o relacionamento com o padrasto, o que leva Baldwin a deixar a Igreja e, aos 18 anos, sair da casa dos pais para morar em Greenwich Village — região boêmia de Nova York, famosa na época pela efervescência artística e cultural.

 

Foto: James Baldwin, 1963. Courtesy: CSU Archives/Everett Collection.

No começo da carreira, James trabalha como freelancer escrevendo resenhas literárias e conhece o romancista Richard Wright, que lhe ajuda a conseguir uma bolsa de incentivo para que pudesse se sustentar como escritor e viver dignamente. Em 1948, ele recebe a bolsa Rosenwald Foundation, que possibilita que ele vá morar em Paris. Longe dos Estados Unidos, Baldwin encontra o distanciamento necessário para escrever sobre suas experiências e a sociedade norte-americana. Em seus primeiros livros, Go Tell It on the Mountain (1953) e Notes of a Native Son (1955), o escritor aborda questões de sua infância e juventude, como sexualidade, religião e raça.

Baldwin passou a maior parte da vida afastado de sua terra natal, morando por um longo período em Paris e também em Istambul, mas sua escrita era sempre direcionada a falar sobre os conflitos e desigualdades enfrentados pela população negra norte-americana e temas tabus em sua época, como relações interraciais e homossexualidade. O escritor retorna aos Estados Unidos nos anos 1960 para juntar-se ao movimento negro na luta pelos direitos civis, ao lado de nomes como Martin Luther King Jr., Malcon X e Nina Simone.

Em sua viagem pelo sul, escreveu o premiado livro de ensaios The Fire Next Time (1963), sobre a identidade negra e a luta contra a branquitude do Estado Americano. Após a morte dos líderes Dr. King e Malcon X e a dura perseguição aos integrantes do grupo Panteras Negras, ele volta para a França e lança, em 1974, o romance Se a Rua Beale Falasse, em que retrata a vida de um casal que mora no Harlem e sofre diariamente com a desigualdade racial e social. 

James Baldwin faleceu em 1987, em decorrência de um câncer no estômago. Sua obra é repleta de ensaios, romances, peças de teatro e poemas. Hoje é considerado um dos escritores mais importante de sua época e tem sido redescoberto pelas novas gerações, além de traduzido para vários idiomas.

 

CURIOSIDADES

O documentário Eu Não Sou Seu Negro (2017), do diretor haitiano Raoul Peck, foi baseado no manuscrito inacabado Remember This House e no livro The Devil Finds Work?, ambos de Baldwin. O filme traz o texto de Baldwin na voz do ator Samuel L. Jackson e une imagens de vídeos populares, fotografias e trechos de entrevistas para a construção de uma narrativa sobre o movimento negro nos Estados Unidos, fazendo uma crítica à supremacia branca. Foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2017. Disponível para locação no Google Play Filmes e YouTube. Assista o trailer.

O pintor Beauford Delaney (1901 - 1979) foi amigo de James Baldwin e costumava se hospedar na casa do escritor na Riviera Francesa. Nos anos 1960, pintou dois retratos do amigo: um em 1963um em 1965.

A cantora, professora e compositora Jamila Woods lançou a música Baldwin dedicada ao escritor. A música faz parte do álbum Legacy! Legacy! (2019), feito para homenagear personalidades negras que marcaram a sociedade com sua arte como: Miles Davis, Basquiat, Muddy Waters, Sun Ra, Eartha Kitt e Octavia E. Butler. Ficou com vontade de ouvir? O álbum está disponível no Spotify e YouTube Music.

 

PREMIAÇÕES

1945 - Prêmio Eugene F. Saxton Memorial Trust

1948 - Bolsa pela Rosenwald Foundation

1954 - Bolsa Guggenheim pela Fundação Memorial John Simon Guggenheim

1956 - Prêmio do Instituto Nacional de Artes e Letras; Bolsa do Partisan Review

1958 - Bolsa da Fundação Ford

1962 - Prêmio da Fraternidade Judaica na Conferência Nacional de Cristãos e Judeus. Prêmio George Polk pela reportagem “Carta de uma região da minha mente”, publicada na revista The New Yorker

1964 - Prêmio dos Críticos de Drama Estrangeiro; Doutor Honoris Causa em Letras pela University of British Columbia

1976 - Doutor Honoris Causa em Letras pela Morehouse College

1986 - La Légion D'Honneur, a maior homenagem da França, concedida pelo presidente François Mitterand

 

DICAS DO LING

Ficou com vontade de ler? Compre o livro na Bamboletras, livraria icônica de Porto Alegre, ou no site da Companhia das Letras.

Assista a adaptação para cinema do romance de Baldwin, Se a Rua Beale Falasse (2018). Lançado em 1974, o livro voltou a chamar a atenção das novas gerações pelo sucesso de Barry Jenkins, aclamado diretor de Moonlight (2016). Disponível para locação no Google Play Filmes e YouTube.

Quer ouvir o próprio James Baldwin lendo um trecho do livro? Dê play no vídeo da Paris Review.

 

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold (editor). James Baldwin. Nova York: Bloom's Literary Criticism (Infobase Publishing), 2007.

PIERPONT, Claudia Roth. Another Country. Crítica da The New Yorker. 2009. Disponível em: newyorker.com/magazine/2009/02/09/another-country

FERREIRA, Maria. Terra estranha - James Baldwin. Resenha do livro feita para o site Impressoes de Maria. 2019. Disponível em: https://impressoesdemaria.com.br/2019/07/terra-estranha-james-baldwin/

Entrevista com o diretor Raoul Peck sobre o filme Eu Não Sou Seu Negro para revista Vice. Disponível em: https://www.vice.com/pt/article/mgxv88/eu-nao-sou-seu-negro-documentario-livro-james-baldwin

Site James Baldwin Project. Disponível em: jamesbaldwinproject.org/AboutJBTimeline.html

FERREIRA, Helder. James Baldwin, o grande crítico do sonho americano. Matéria na Revista Cult. 2017. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/james-baldwin-o-grande-critico-do-sonho-americano/

PEREIRA, Gilberto G. Vida e obra de James Baldwin. Matéria no Jornal Opção. 2018. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/vida-e-obra-de-james-baldwin-115751/