Foto: Bob Peterson / Time Life Pictures Foto: Bob Peterson / Time Life Pictures

Reflexões sobre morte e coragem em Nêmesis

“O que todos sabiam é que a doença era altamente contagiosa e podia ser transmitida às pessoas saudáveis pela simples proximidade física com as já infectadas."

Trecho de Nêmesis, de Philip Roth

 

No escaldante verão de 1944, a ameaça invisível de um vírus altamente contagioso tira a tranquilidade da comunidade de Newark, em New Jersey. Em Nêmesis, o último romance de Philip Roth, um surto de poliomielite serve de base para uma reflexão ainda mais profunda, ilustrada pelas questões de seu personagem principal.

 

O LIVRO

Lançado em 2010, o livro narra os efeitos da pandemia em uma comunidade de judeus em Newark, no mesmo período em que a Segunda Guerra se aproxima do fim. Conta a história de Bucky Cantor, um jovem professor de educação física que dirige um centro esportivo comunitário. Por causa de sua miopia, Cantor é dispensado dos esforços de guerra. Sua baixa estatura também o impedira de práticas como o basquete, o futebol e o beisebol em competições universitárias, limitando sua performance de atleta ao arremesso de dardos e o levantamento de peso. Ainda que não tenha partido para o embate bélico, Cantor e tantos outros teriam que lutar contra o terrível surto da pólio.

 

“Bucky não era um homem brilhante – e nem precisava ser para ensinar educação física a crianças – nem fora minimamente alegre. Por temperamento, não tinha senso de humor e, embora dotado de boa articulação verbal, não era nem um pouco espirituoso, jamais na vida falara de forma satírica ou irônica, raras vezes contava uma piada ou se permitia uma brincadeira."

 

Narrado em terceira pessoa por Arnie Mesnikoff, que fora um dos alunos de Bucky diagnosticado com pólio naquele mesmo verão, o leitor vai descobrir sobre a personalidade do professor, seu senso de responsabilidade, os questionamentos diante do sofrimento imposto principalmente às crianças (a poliomielite ficou conhecida como paralisia infantil, ainda que adultos também pudessem contrair a doença) e o constante sentimento de culpa. Bucky quer encontrar explicações para as desigualdades da vida, sem sucesso.

Assim que os primeiros casos da doença são registrados, o pânico toma conta da cidade e, com ele, vem o preconceito. Judeus e italianos são acusados de propagarem a doença, mesmo que as causas da transmissão sejam ainda desconhecidas. Pessoas são hostilizadas como se fossem a causa da tragédia. Bucky acaba seduzido pelo convite de ir trabalhar em um lugar considerado imune à pandemia, um campo de férias. Entretanto, passa a conviver com a culpa de sua escolha.

Em Nêmesis, Roth trata do tema da morte partindo de uma abordagem mais nostálgica e sensível. Nostálgica pois a questão da poliomielite lhe é familiar, uma vez pertencente à geração que viveu sob o fantasma do vírus sem a possibilidade da vacina. Sensível pois a morte surge como uma tragédia coletiva e não somente como um drama individual associado a um personagem.

 

“Em 2010, eu tive a forte suspeita de que havia feito meu melhor trabalho e qualquer outra coisa além seria inferior.”

Philip Roth em entrevista ao The New York Times

 

O livro encerra a tetralogia composta pelos três livros anteriores de Roth: Homem Comum (2006), Indignação (2008) e A humilhação (2009). Em todos eles, temos a destruição e a tragédia conectando as obras, ainda que não compartilhem personagens ou tenham ligação narrativa. Nêmesis é também o nome da deusa grega associada à vingança divina.

 

O AUTOR

Philip Milton Roth nasceu em 19 de março de 1933 em Newark, New Jersey (EUA). Ele e o irmão mais velho foram criados pelos pais dentro da tradição judaica, sendo a primeira geração a nascer nos Estados Unidos. Com mais de 30 obras publicadas, a infância do célebre escritor foi em um apartamento com apenas três livros, recebidos de presente quando algum familiar adoecia.

Formou-se bacharel em Letras em 1954 e logo iniciou o mestrado em Literatura Inglesa na Universidade de Chicago. Lecionou escrita criativa nas universidades de Chicago, Iowa e Princeton, e na Universidade da Pensilvânia deu aulas de literatura comparada.

Aos 26 anos lançou sua primeira obra, Adeus, Columbus (1959) – um compilado de ficções curtas que faria grande sucesso, ainda que tenha recebido duras críticas pela forma com que tratou os valores fundamentais do judaísmo, criando uma tensão entre Roth e a comunidade judaico-americana. Apesar da criação judaica, ele se considerava ateu.

O escritor ficou mundialmente conhecido em 1969, com o polêmico livro O Complexo de Portnoy, em que trata de temas como a masturbação excessiva, relações familiares, o judaísmo e a vida nos Estados Unidos.

No final dos anos 70, Roth escreveu uma série de nove livros protagonizados pelo personagem Nathan Zuckerman, um romancista judeu que é considerado o alter ego do autor, conhecido por mesclar em suas obras realidade e ficção. Sobre o assunto, em entrevista ao The Paris Review, ele declarou que:

 

"Fazer falsas biografias, falsas histórias e inventar uma existência meio-imaginária a partir do drama real da minha existência é minha vida. Tem que haver algum prazer nesta vida, e é isso."

 

Os temas mais recorrentes em suas obras são os sentimentos humanos, as crises existenciais, o judaísmo e os Estados Unidos. Famoso pelo tom crítico e humor sarcástico, Roth é considerado um dos mais célebres escritores do século XX. Entre as obras de maior sucesso, destaque para a Trilogia Americana, composta pela Pastoral Americana (1997), vencedor do prêmio Pulitzer, Casei com um Comunista (1998) e A Marca Humana (2000).

Nos últimos anos da carreira literária manteve um ritmo produtivo intenso, lançando praticamente um livro por ano, abordando temas como a morte e o envelhecimento. Nêmesis foi o último livro publicado. Dois anos depois de sua publicação, Roth anunciava a saída do mundo literário, aos 77 anos. Cansado da ficção, dedicou seu tempo livre à leitura de livros de história, entre os verões na casa de campo em Connecticut e as temporadas em Upper West Side, em Nova York. Faleceu por insuficiência cardíaca em 22 de maio de 2018, em Manhattan.

 

CURIOSIDADES

A HBO produziu uma minissérie sobre uma das obras mais importantes de Roth. Assista ao teaser de The Plot Against America, uma história em que um antissemita é eleito presidente dos Estados Unidos no início da década de 1940.

A última entrevista que Philip Roth deu foi ao jornal americano The New York Times, poucos meses antes de falecer. 

 

Conheça algumas adaptações das obras de Roth para o cinema:

Goodbye, Columbus (1969), de Lary Peerce, The Human Stain (2003), de Robert Benton, American Pastoral (2016), de Ewan MacGregor, e Indignation (2016), de James Schamus.

 

PREMIAÇÕES

National Book Award: Adeus, Columbus (1960) e Sabbath's Theater (1995)

National Book Critics Circle Award: The Counterlife (1986), Patrimony (1991)

Prémio PEN/Faulkner de Ficção: Operation Shylock (1994)

Prémio Pulitzer de Ficção: American Pastoral (1998)

Ambassador Book Award of the English-Speaking Union: por Casei com um Comunista (1998)

National Medal of Arts (1998)

Prix du Meilleur livre étranger (França): por American Pastoral (2000)

PEN/Faulkner Award:  por The Human Stain (2001)

Gold Medal In Fiction de The American Academy of Arts and Letters (2001)

WH Smith Literary Award: por The Human Stain (2001)

National Book Foundation's Award for Distinguished Contribution to American Letters (2002)

Prix Médicis étranger (França) por The Human Stain (2002)

Honorary Doctor of Letters degree da Universidade de Harvard (2003)

Sidewise Award for Alternate History por The Plot Against America (2005)

PEN/Nabokov Award por realização em vida (2006)

PEN/Faulkner Award por Everyman (2007)

PEN/Saul Bellow Award  por Realização em Ficção Americana (2007)

Prêmio Internacional Man Booker (2011)

 

DICAS DO LING

O autor Philip Roth fala sobre o romance Nêmesis em uma entrevista exclusiva ao Estadão, em junho de 2010.

Nêmesis é o 32º e último livro escrito por Philip Roth. Você pode comprá-lo no site da editora Companhia das Letras.

 

Referências:

CABRAL, Isadora. Tragédia em Newark: Nêmesis, de Philip Roth, e o diálogo com a tragédia grega. 2016. 41p. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/157075/001017552.pdf?sequence=1. Acesso: 17/06/2020.

Crítica do The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2010/oct/03/philip-roth-nemesis-book-review. Acesso: 15/06/2020.

Crítica da Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1501201120.htm. Acesso: 15/06/2020.

BATISTOTI, Vitória. Philip Roth: relembre a trajetória e o legado do escritor. Revista Galileu. 2018. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/05/philip-roth-relembre-trajetoria-e-o-legado-do-escritor.html. Acesso: 17/06/2020.

AFP. Philip Roth, um gigante da literatura que não venceu o Nobel. GZH. 2018. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2018/05/philip-roth-um-gigante-da-literatura-que-nao-venceu-o-nobel-cjhj06zyp00uj01l00blez3ir.html. Acesso: 18/06/2020.