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Wislawa Szymborska: da vida reservada ao Prêmio Nobel

A ALEGRIA DE ESCREVER

 

Para onde corre este cervo escrito na floresta que escrevi?

É para beber da água escrita,

que desenha seu focinho?

Por que ele ergue a cabeça, escutou algo?

Apoiado nas quatro patas emprestadas da verdade

ele apura as orelhas sob meus dedos.

Silêncio – essa palavra ressoa na textura do papel

e afasta os galhos

que brotam da palavra floresta.

Sobre a folha em branco há letras espreitando

que podem tomar o mau caminho

formando frases ameaçadoras

das quais nada escapa.

Em cada gota de tinta há um bom estoque

de caçadores de olho na mira,

prontos a descer pela caneta íngreme,

cercar o cervo e apontar as armas.

Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.

No preto-e-branco vigem outras leis.

Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser

e poderá ser dividido em pequenas eternidades,

cada uma com chumbo suspenso em pleno vôo.

Aqui nada acontecerá sem meu aval.

Contra minha vontade, nem uma folha cairá

e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.

Então existe um mundo

onde eu possa impor o destino?

Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?

Uma existência que, a meu comando, não terá fim?

A alegria de escrever.

O poder de preservar.

Vingança de uma mão mortal.

 

BIOGRAFIA

Wislawa Szymborska (lê-se mais ou menos assim: Visuáva Chemborska) foi um dos grandes nomes da poesia polonesa do século 20, fazendo parte da mesma geração de poetas como Zbigniew Herbert (1924-1998) e Czeslaw Milosz (1911-2004), de quem foi próxima, e juntos fizeram parte da renovação da poesia em seu país. A poeta nasceu em 2 de julho de 1923, no pequeno lugarejo de Bnin, que atualmente faz parte da cidade de Kórnik, no oeste da Polônia. Aos 8 anos de idade, Wislawa se mudou com a família para Cracóvia, onde morou a vida toda. Ao longo da sua juventude, viveu a invasão alemã na Polônia (1939-1945) — fato que iniciou a Segunda Guerra Mundial na Europa — e, pela retirada de direitos do povo polonês de frequentar escolas públicas, acabou tendo que estudar clandestinamente. Durante a guerra, trabalhou como escriturária numa ferrovia, conseguindo evitar uma possível deportação para os campos de trabalho forçado na Alemanha. 

Com o fim da guerra, em 1945, Szymborska começou seus estudos na Universidade Jagiellônica de Cracóvia e lá estudou inicialmente Língua e Literatura Polonesa, mas depois mudou para Sociologia, deixando o curso em 1948, devido às dificuldades financeiras. No mesmo ano, teve seu primeiro poema publicado em um jornal diário e é possível perceber a influência do realismo socialista em suas primeiras obras. A autora, assim como muitos poetas e intelectuais à época, se tornou uma estalinista convicta que depois viria a desiludir-se com o comunismo. Chegou a ser filiada do Partido Comunista e rompeu com o movimento em 1957, quando lançou o livro de poemas Wolanie do Yeti (Chamando por Yeti), em que criticava os horrores causados por Stalin. Depois disso, ela renegou seus primeiros livros, escritos no começo dos anos 1950, por não representarem mais seu modo de pensar.

Além de poeta, Wislawa trabalhou como secretária em uma revista de educação, também foi ilustradora, tradutora e crítica literária, chegando a ter sua própria coluna na revista Crítica Literária, intitulada Leituras Não-Obrigatórias, em que escreveu de 1968 até 1981. Por conta da dificuldade em traduzir a poesia polaca, até os anos 1990, seu trabalho como poeta era mais conhecido na Europa. Somente em 1996, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, seu nome se tornou conhecido internacionalmente e, desde então, sua obra passou a ser traduzida para diversos idiomas. 

Szymborska, que levava uma vida discreta, foi alçada ao estrelato com a premiação do Nobel. A poeta não gostava de dar entrevistas, nem de aparecer na mídia e, durante o período em que esteve nos holofotes, teve dificuldades para lidar com a falta de tranquilidade, ocasionando em uma fase de bloqueio criativo, que foi chamada pelos amigos próximos da autora de “Tragédia do Nobel”.

Wislawa Szymborska faleceu em 1º de fevereiro de 2012, aos 89 anos.

 

 

OBRA

Szymborska escreveu por mais de meio século, mas publicou apenas algumas centenas de poemas, reunidos em 11 livros. A pouquidade da sua obra vem do método de trabalho da autora, que dizia: "Escrevo os poemas à noite, mas releio-os à luz do dia, e nem todos sobrevivem".

Sua poesia — marcada por sofisticação intelectual e filosófica — utiliza uma linguagem simples, seja na sintaxe ou na sua preferência por construir poemas a partir de tópicos, e situações cotidianas, fazendo com que diferentes públicos apreciem suas palavras. Além do cotidiano, a poeta se inspirava nas ciências naturais, especialmente a biologia e a astronomia. Usava o humor e a ironia para tratar de temas mais difíceis, sabendo que este recurso produziria um certo distanciamento e evitaria que sua poesia caísse no patético ou no trágico.

Apesar da aparente facilidade, já que usa uma linguagem bem coloquial, Wislawa “incorpora provérbios, adágios, expressões populares. Isso, mais o emprego do verso livre e a máxima exploração da sintaxe para efeitos semânticos, faz com que seja difícil traduzir sua poesia, encontrar equivalências na outra língua para seus jogos linguísticos”, afirma Regina Przybycien, tradutora de Wislawa, que diz ainda “assim como é difícil traduzir o mais coloquial dos nosso poetas canônicos, Manuel Bandeira. A coloquialidade de Szymborska pode ser comparada a de Bandeira, mas o humor e a ironia de sua poesia têm mais afinidade com a de Carlos Drummond de Andrade, no qual esses elementos convivem com certo estoicismo.”

Outra forte característica de sua obra é a ideia do theatrum mundi — o mundo como um teatro. O escritor mais famoso do mundo também era adepto desse conceito e em algumas peças, como Do jeito que você gosta e Macbeth, isso fica mais evidente. Assim como Shakespeare, Wislawa usa a metáfora da vida como representação:

 

A vida na hora.

Cena sem ensaio.

Corpo sem medida.

Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.

Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça

devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,

mal posso manter o ritmo que a peça impõe.

Improviso embora me repugne a improvisação.

Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.

[...]

Se pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes

ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!

Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo — pergunto

(com a voz rouca

porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida

feita em acomodações provisórias. Não.

De pé em meio à cena vejo como é sólida.

Me impressiona a precisão de cada acessório.

O palco giratório já opera há muito tempo.

Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.

Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,

vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

 

trecho do poema A vida na hora

 

Ainda segundo Regina Przybycien, doutora em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG):

 

“Há uma evidente preferência de Szymborska pelo espetáculo da vida em toda a sua complexidade, com seus atos cruéis, mesquinhos ou simplesmente confusos. A arte é um pequenino recorte bem delineado desse imenso palco onde são representadas as verdadeiras tragédias e comédias. Outra questão importante para entender a sua criação poética: ela não se interessa pelos grandes acontecimentos que ocupam o centro do palco. Escolheu narrar o pequeno, o particular, o trabalho dos bastidores, a vida miúda, não só humana, mas também de outros seres que compartilham esse grande teatro que é o planeta Terra.”

 

 

 

CURIOSIDADES

Você sabia que a aclamada Trilogia das Cores, do cineasta polones Krzysztof Kieslowski, foi inspirada em um poema de Wislawa? O poema  Amor à Primeira Vista foi fonte de inspiração para os filmes: A Liberdade é Azul (1993)A Igualdade é Branca (1994) e A Fraternidade é Vermelha (1994).  

Escritora mirim! Aos 4 anos de idade, Wislawa já escrevia seus primeiros versos e ganhava do pai alguns trocados quando ele considerava que o poema era bom!

Conheça algumas das divertidas e originais resenhas de Szymborska, realizadas para a coluna de Leituras não obrigatórias. Traduzidas por Regina Przybycien e publicadas na Revista Serrote, do Instituto Moreira Salles. 

 

PRÊMIOS

1963 - Prêmio do Ministério da Cultura da Polônia

1991 - Prêmio Goethe de Poesia

1995 - Prêmio Herder | Título de Doutora Honorária em Letras, pela Universidade Adam Mickiewicz de Poznan

1996 - Prêmio Nobel da Literatura, pelo conjunto da obra | Prêmio do Club PEN da Polônia

2006 - Prêmio Nike de Literatura Polonesa, pelo livro Dwukropek

2011 - Ordem da Águia Branca (maior honraria oferecida pelo governo da Polônia)

 

DICAS DO LING

Ficou com vontade de conhecer mais a obra de Wislawa Szymborska? A Companhia das Letras lançou três coletâneas de poemas da autora: Poemas (2011), Um Amor Feliz (2016) e Para o meu coração num domingo (2016). 

Conheça os conselhos de Wislawa aos aspirantes a escritores: uma seleção das respostas da escritora no período em que foi responsável pelo Correio Literário na revista Vida Literária

 

REFERÊNCIAS

PRZYBYCIEN, Regina. A poesia de Wisława Szymborska: a história vista das margens. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/1281/1176

PRZYBYCIEN, Regina. O mundo e o palco de Wisława Szymborska. Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Especial-Wislawa-Szymborska

Sem autor: O poeta e o mundo: Nove poemas da polonesa que, em 1996, ganhou o Prêmio Nobel da Literatura. Revista Piauí, 2007. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-poeta-e-o-mundo/