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Mayara Paixão: quando se trata de jornalismo na América Latina, não existem respostas simples

Única correspondente internacional da Folha de São Paulo na América Latina, Mayara Paixão (JV 2023) decidiu adiar em um ano o início do curso de mestrado na Columbia University em Nova York para viver a experiência de ser repórter a partir de Buenos Aires. Formada pela USP e premiada pela série que produziu sobre a migração na selva de Darién, a jornalista agora vive na pele a realidade que vai estudar a fundo em seu retorno à universidade – e acredita que esse é o caminho para qualificar a cobertura jornalística sobre as complexidades do continente latino-americano.

Mayara Paixão: quando se trata de jornalismo na América Latina, não existem respostas simples

Enquanto os colegas de escola se questionavam sobre qual carreira seguir durante a adolescência, Mayara Paixão não tinha dúvidas: tinha certeza de que seria jornalista.

Além de ter familiaridade com a escrita, sempre gostou de aprender coisas novas – e foi por isso que, mais do que nas cadeiras da Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), Mayara acabou se encantando pelas disciplinas dos cursos de relações internacionais e ciência política da faculdade.

Começou a trabalhar como repórter ainda durante a graduação e, depois de passar pelo Brasil de Fato e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, aterrissou na Folha de São Paulo como estagiária já na editoria de política internacional. “Sempre quis trabalhar com América Latina e esse foi um desejo muito expresso para o jornal”, conta Mayara.

Em abril de 2024, foi selecionada pela Folha de São Paulo para se tornar correspondente internacional em Buenos Aires. Nos oito meses cobrindo América Latina, a repórter aprofundou sua paixão pelo tema das migrações: já escreveu sobre a crise migratória na selva de Darién, caminho de imigração ilegal para os EUA entre a Colômbia e o Panamá; viu de perto a situação de imigrantes venezuelanos em Pacaraima; e cobriu as eleições em diversos países latinos.

Formada em 2021, agora Mayara vai buscar mais conhecimentos em outra parte das Américas. Depois de ser aprovada para o mestrado na Columbia University em Nova York e contemplada pela bolsa do programa Jornalista de Visão, ela decidiu adiar o início da pós-graduação para 2025 para viver a experiência da correspondência internacional antes de voltar aos estudos. “Vou ser uma aluna melhor na universidade depois de viver tudo isso”, afirma.

 

De São Paulo à selva de Darién, movida pelas perguntas

Quando se trata de política internacional e América Latina, Mayara é avessa às respostas fáceis. “Sempre volto das coberturas com mais dúvidas e não tenho vergonha disso. Nossa função é questionar”, explica. 

No caso de Darién, foi também uma inquietação quanto à falta de cobertura sobre o tema que levou Mayara até a selva entre o Panamá e a Colômbia. No início de 2023, um acidente ocorreu com uma van que transportava migrantes que haviam acabado de cruzar Darién. “Estava em um plantão e ficamos sabendo que havia brasileiros nessa van”, conta. 

Durante a cobertura, Mayara descobriu também que crianças estavam nesse carro. “Duas crianças brasileiras morreram nesse acidente. Elas foram enterradas em uma vala comum e nunca se falou disso”, diz. “A partir daí, comecei a ter um incômodo em relação a como as crianças migrantes são tratadas – ou não tratadas.”

Ela seguiu acompanhando os dados sobre a travessia em Darién, até que ficou chocada com uma nova informação. “Lia todos os relatórios, e um dia um asterisco me chamou atenção: indicava que todos os brasileiros que cruzam a selva são crianças”, lembra.

Depois de procurar fontes internacionais para confirmar a informação, Mayara descobriu que 16 mil crianças brasileiras já cruzaram a selva com seus pais migrantes. “Eu sempre quis ir a Darién, mas foi essa história que me levou até lá”, diz. A Folha topou enviar Mayara junto do fotojornalista Lalo de Almeida para reportar diretamente da selva. 

Os repórteres passaram uma semana em Darién, mas o trabalho começou bem antes – nos quatro meses anteriores à viagem, Mayara fez mais de 50 entrevistas. O resultado desse esforço de reportagem rendeu o Prêmio Folha de Jornalismo e a indicação para o Prêmio Vladimir Herzog.

Mayara já havia participado de outras grandes séries da Folha, como 8 bilhões no mundo e Onde se fala português, mas conta que Darién, a selva da morte foi o ponto de virada para sua carreira e visão de jornalismo. 

“Tenho minhas dúvidas se o jornalismo muda alguma coisa, mas a migração te dá uma oportunidade de ver algumas pequenas mudanças, o que é muito precioso para seguir com vontade no que a gente faz.” Muito além dos prêmios, as recompensas da reportagem sobre a selva cruzada por mais de um milhão de migrantes vieram da própria cobertura.

Os jornalistas descobriram que crianças brasileiras tinham sido alojadas em abrigos do Panamá depois de perder seus pais na travessia pela floresta. A atenção trazida pela reportagem ajudou a encontrar as famílias de duas delas. 

“Acredito demais nessa cobertura”, diz Mayara. “A vida das pessoas é afetada pela geopolítica, e conseguimos ir além do ponto de vista geopolítico, de explicar a importância do Brasil nesse tema, e falar sobre as pessoas. Conseguimos contar dezenas de histórias migrantes que não seriam contadas se não tivéssemos ido.”

 

Baseada em Buenos Aires, atenta à América Latina

Depois de mais de 4 anos escrevendo sobre política internacional da redação de São Paulo, Mayara foi selecionada pelo programa da Folha para se tornar a única correspondente do jornal na América Latina. 

Em abril de 2024, se mudou para Buenos Aires – mas brinca que mal teve tempo de conhecer a cidade. “Digo que mal fiquei em Buenos Aires, mas é verdade: fomos ao México duas vezes cobrir as eleições, entrevistamos o Mujica no Uruguai, cobrimos a tentativa de golpe em La Paz, fomos à Venezuela e à Pacaraima cobrir a crise migratória e acabamos de voltar da Guiana Francesa.”

Entre coberturas especiais e notícias pontuais, Mayara segue atenta às dinâmicas da política latino-americana, e pode viver na pele a experiência de uma cobertura em meio aos tensos conflitos do continente. “Fomos cobrir as eleições venezuelanas e já sabíamos que seria a cobertura do ano. A Venezuela foi um ponto fora da curva, foi muito forte”, comenta. 

Depois de entrevistar os principais atores do jogo político no país, partiu para uma cobertura in loco dos desdobramentos das eleições. “Fizemos uma cobertura de diferentes aspectos do país, fomos a cidades próximas de Caracas, falamos com muitas pessoas”, conta. Mas a reportagem também foi marcante por conta de suas dificuldades. 

“Era quase impossível obter informações e muito difícil fazer uma cobertura responsável, que dê conta de tudo que está acontecendo ali”, explica. Na hora de deixar o país, os obstáculos para a cobertura não foram apenas logísticos. 

“Com o rompimento das relações da Venezuela com outros países, vários voos foram cancelados. A saída encontrada pelo jornal foi ir para Bogotá”, lembra a repórter. “Mas o mais difícil é sair do país sem expectativa ou esperança em relação ao cenário.” Quando se trata de América Latina, a experiência de Mayara é prova de que não há respostas fáceis. 

E as perguntas de repórter também servem como estopim para novas ideias de reportagens: depois das eleições venezuelanas, os indicadores migratórios tiveram uma alta. “Eu falei com pesquisadores e organizações humanitárias e me avisaram que a crise migratória iria piorar. Essa é uma cifra que nunca zerou, mas teve uma semana em que quase 800 pessoas cruzaram a fronteira em um dia”. Mayara propôs a pauta à Folha e foi enviada para Pacaraima, em Roraima, na fronteira com a Venezuela. 

“Cobrimos o ápice da crise. É uma situação assustadora, porque são cinco anos de fluxo diário de migrantes, e não é um país em guerra”, relata. Mas se por um lado há dificuldades, o esforço de cobrir assuntos muitas vezes negligenciados também surte resultados. “Depois da nossa cobertura, fiquei sabendo que outros jornais internacionais foram para lá. O que mais me deixou feliz foi saber que a cobertura motivou a retomada dos debates sobre a Operação Acolhida.”

Em meio a tantas coberturas paralelas, a repórter não perde de vista que as histórias de pessoas são o real fio condutor de temas como migração e refúgio. Enquanto ainda estava em São Paulo, fazia parte do seu cotidiano cobrir a chegada de migrantes do Afeganistão a Guarulhos. 

“Eu sabia que eles iam cruzar para Darién, mas eles não admitiam. Não encontrei nenhum dos migrantes que eu já conhecia por lá”, lembra. Mas meses depois, já como correspondente, por acaso acompanhou um colega em uma visita a um abrigo no México, e se surpreendeu ao ver como as histórias que cobre podem se conectar. 

“Encontrei três afegãos que eu conhecia de Guarulhos, todos com histórias muito marcantes. A reportagem não mudou muita coisa na vida deles, mas mostra como essas coberturas rendem coisas bonitas e emocionantes”, afirma. 


 

Uma cidadã latina em Nova York

Desde a graduação, Mayara entende que a qualificação para um repórter passa por ir além do jornalismo e se aprofundar nos temas relacionados à cobertura. “Estudar comunicação não basta: precisamos de muito mais que isso”, defende.

Foi com esse desejo que ela buscou o mestrado na Columbia University, em Nova York. “Se nós queremos profissionais bem preparados sobre o tema, se queremos encontrar pautas fora da curva, que nos conectem e chamem atenção, precisamos parar de olhar para fenômenos específicos e criar uma cobertura perene de qualidade”, diz. 

E se Mayara acredita que é este o caminho para uma imprensa mais qualificada, ela reconhece também que é um privilégio poder seguir por essa rota. “Não tive de trabalhar no ensino médio como muitos brasileiros, mas trabalhei durante a graduação inteira. É um privilégio tremendo poder fazer uma pausa de um ano para me dedicar a um assunto que eu amo em uma das melhores universidades do mundo.”

A decisão de adiar em um ano o início da pós-graduação também foi movida pela vontade de se qualificar ainda mais antes de voltar aos bancos da universidade. “Como correspondente, parece que vivi três anos em um só. Estou vivendo a região na qual estou me especializando e acredito que vou ser uma aluna muito melhor por conta disso”, conta a repórter. “Me encontrei e quero ir fundo no tema.”

Como a maioria dos jornalistas, Mayara fica mais confortável escutando e fazendo perguntas do que falando – mas mal pode esperar para contribuir para o debate sobre América Latina em terras estadunidenses. 

“Quero absorver tudo que for possível e estou muito disposta a aprender, mas também sei que sou alguém que pode dar muita coisa em troca. Não sou só uma página em branco. Sou uma brasileira muito inserida na América Latina e tenho reflexões a fazer e compartilhar, sempre com a humildade de entender que estou lá para aprender”. 

Agora, a maior vontade de Mayara é que sua trajetória possa refletir em uma maior qualificação não só sua, mas de outros colegas do jornalismo. “Não tenho dúvidas de que sou completamente apaixonada por esse assunto e de que tenho desenvolvido um bom trabalho na área. Quero voltar para o Brasil e fazer essa cobertura crescer com a maior qualidade possível”. 

 

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