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A análise visceral sobre a vida em Serotonina

 

Os primeiros antidepressivos conhecidos (Seroplex, Prozac) aumentavam os níveis de serotonina no sangue inibindo sua recaptação pelos neurônios 5-ht1. A descoberta, no começo de 2017, do Capton d-l abriria caminho para uma nova geração de antidepressivos, com um mecanismo de ação bem mais simples, já que se tratava de estimular a liberação por exocitose da serotonina produzida no nível da mucosa gastrointestinal. No fim desse ano, o Capton d-l começou a ser comercializado com o nome Captorix. E de imediato demonstrou uma eficácia surpreendente, que permitia aos pacientes participarem com uma facilidade inédita dos ritos mais importantes de uma vida normal numa sociedade evoluída (higiene, vida social limitada à boa vizinhança, procedimentos burocráticos simples) sem estimular em nada, ao contrário dos antidepressivos da geração anterior, as tendências suicidas ou de automutilação.

 

Os efeitos secundários indesejáveis do Captorix observados com mais frequência eram náuseas, desaparecimento da libido, impotência.

 

Eu nunca tinha sentido náuseas.

 

(trecho da página 9)

 

Michel Houellebecq é considerado um dos ficcionistas mais interessantes de seu tempo. Serotonina, seu oitavo romance, foi publicado em 2019 com uma tiragem inicial de 320 mil cópias. No Brasil, foi traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht e publicado pela Companhia das Letras. Com humor ácido e o niilismo lúcido que lhe é costumeiro, Houellebecq nos traz um personagem autodestrutivo e obcecado que analisa não só sua própria vida mas também o mundo que o cerca.

 

O LIVRO

Serotonina tem como tema central a depressão do protagonista e narrador Florent-Claude Labrouste, um homem branco de 46 anos, bem sucedido financeiramente que trabalha como agrônomo para o governo francês. O personagem vive em um apartamento em Paris com sua companheira Yuzu, com quem o relacionamento não é mais capaz de despertar qualquer tipo de alegria. Tanto a vida afetiva quanto o trabalho causam apenas insatisfação para Florent que, tragado pela depressão, decide largar tudo e embarca em um processo de apagamento de sua identidade.

 

“O personagem não tem problemas financeiros. O que lhe falta é apenas uma razão para viver. A química farmacêutica garante-lhe um prolongamento da vida. Só não lhe oferece emoções nem desejos. O medicamento, um poderoso antidepressivo, “um pequeno comprimido branco, oval, divisível”, 10 ou 20 mg, “ajuda os homens a viver ou, ao menos, a não morrer, por algum tempo. A morte, contudo, acaba por impor-se”. Esse é o tom. A depressão do personagem e narrador do romance não é o produto exclusivo de uma crise de civilização ou trauma. Resulta de uma disfunção orgânica, cerebral, que se agrava com a solidão.”

(trecho do artigo de Juremir Machado no Correio do Povo).

 

O contexto social em que a história se desenvolve é marcado pelos impactos causados pela globalização e mecanização dos meios de produção, levando à crise da agricultura francesa, instabilidade vivida até hoje. Michel Houellebecq mais uma vez escreve de forma quase profética, pois em Serotonina temos a presença do movimento que ficou conhecido como coletes amarelos aparecendo no livro na mesma temporalidade em que ganhou força no interior da França. A aproximação do personagem de Claude ao movimento se dá quando ele abandona o apartamento em Paris e parte para o interior da França, onde encontra um velho amigo de faculdade que o hospeda. Esse amigo é um proprietário rural que vive a decadência causada pela crise agrária e faz parte do movimento dos coletes amarelos. Assim, o narrador passa a acompanhar as manifestações que acontecem na França, assumindo uma postura favorável à causa. A viagem de Florent-Claude leva o leitor a um mergulho nas memórias do personagem revelando suas dores, seus desejos, arrependimentos e medos. 

 

O AUTOR

Um dos autores mais famosos e polêmicos da atualidade, Michel Houellebecq é o escritor francês ativo mais lido e traduzido em todo o mundo. Ficcionista, ensaísta, poeta, realizador e argumentista ele fez sua estreia no meio literário em 1994, com a publicação do romance Extensão do domínio da luta. Atingiu a fama em 1998, com o premiado Partículas Elementares, considerado um clássico do niilismo. Desde então, suas obras são motivo de muito alvoroço entre a crítica literária e os leitores assíduos do autor. Outros títulos importantes de Houellebecq: Plataforma (2001), A possibilidade de uma ilha (2005), O mapa e o território (2010) e Submissão (2015).

 

Foto: Michel Houellebecq no Instituto Ling, 2016.

 

“Cada livro seu envolve um drama individual imerso numa grande questão social. Já foi a solidão e as revoluções tecnológicas, a sexualidade e o consumismo, a busca de referências e o terrorismo, a perda de sentido e a eutanásia.”

(trecho do artigo de Juremir Machado no Correio do Povo)

 

Nascido em 1956, na Ilha da Reunião (departamento ultramarino francês localizado no Oceano Índico), Houellebecq foi criado pela avó materna e viveu em Argel até 1961. Depois mudou-se para a França, onde estudou cinema e graduou-se em Agronomia pelo Instituto Agronômico de Paris-Grignon. Além do trabalho como escritor, Michel também se dedica à fotografia e ao cinema, dirigindo e atuando em alguns filmes.

 

PREMIAÇÕES:

1998 - Prêmio Décembre, por Partículas Elementares.

2002 - Prêmio Literário Internacional IMPAC de Dublin, por Partículas Elementares.

2005 - Prêmio Interallié pelo livro A possibilidade de uma ilha.

2010 - Prêmio Goncourt, pela obra O mapa e o território.

2019 - Recebeu da França a Ordem Nacional da Legião de Honra.

 

CURIOSIDADES:

O próprio Juremir Machado, convidado desta edição, já fez uma viagem com o autor Michel Houellebecq. E virou livro: Um escritor no fim do mundo

Você sabia que Houellebecq já atuou em vários filmes? Chegou a interpretar ele mesmo no filme O sequestro de Michel Houellebecq (2016), de Guillaume Nicloux. 

Em 7 de janeiro de 2015, quando ocorreu o massacre ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, o escritor Michel Houellebecq estampava a capa da edição. Com a charge que o intitulava o “mago”, a matéria tratava do lançamento do seu polêmico livro Submissão, que conta a história de uma França governada por um partido muçulmano em 2022. Após o ataque ao jornal, Houellebecq suspendeu a promoção da obra.

 

DICAS DO LING:

Leia a entrevista concedida por Michel Houellebecq ao Programa Milênio, em 2016, quando participou do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre. 

Ficou com vontade de ler o livro? Você pode comprar na Bamboletras, livraria de Porto Alegre que agiliza a entrega pra você, ou adquirir seu exemplar no site da editora Companhia das Letras.

Assista a entrevista realizada por Juremir Machado para o Programa Livro Aberto, onde ele conversa com Houellebecq na Patagônia. 

 

REFERÊNCIAS

BETTY, Louis. Lonely White Men: On Michel Houellebecq’s “Serotonin”. Site Los Angeles Review of Books, 2019. Disponível em: https://lareviewofbooks.org/article/lonely-white-men-on-michel-houellebecqs-serotonin/

LÍSIAS, Ricardo. Michel Houellebecq está morto. Revista Quatro Cinco Um: revista dos livros, 2019. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/l/michel-houellebecq-esta-morto

MACHADO, Juremir. Serotonina é tristemente belo. Correio do Povo, 2019. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/serotonina-%C3%A9-tristemente-belo-1.354214

Sem autor: Michel Houellebecq. Libreto Fronteiras do Pensamento, 2016. Disponível em: https://www.fronteiras.com/ativemanager/uploads/arquivos/produtos_culturais/4802648a2bf428ea5118ffaa8f798e99.pdf

SEXTON, David. Book of the week: Sérotonine by Michel Houellebecq. Jornal Evening Standard, 2019. Disponível em: https://www.standard.co.uk/lifestyle/books/serotonine-by-michel-houellebecq-review-a4035126.html