Foto: Leonardo Kotz Foto: Leonardo Kotz

A complexidade da mulher e da maternidade em A Filha Perdida, de Elena Ferrante

 

“Um filho é, de fato, um turbilhão de aflições.”

A filha perdida, de Elena Ferrante, página 50

 

 

INTRODUZINDO O LIVRO 

Com 176 páginas divididas em 25 capítulos rápidos, A filha perdida é um daqueles livros fáceis de ler em uma sentada só. Traçado com a linguagem ágil e fluída característica da escritora Elena Ferrante, o romance poderia ser facilmente devorado em uma tarde, exceto pelo seu conteúdo complexo, que requer boas pausas por conta da narrativa às vezes um tanto indigesta e repleta de reflexões.

A obra, narrada em primeira pessoa, traz memórias de Leda, uma professora universitária solteira, de meia-idade, que relembra o fim de seu casamento e seu histórico com as filhas enquanto passa férias no litoral italiano. Quando se depara, na beira da praia, com uma barulhenta família napolitana, Leda é invadida por memórias da juventude e da sua própria família. 

Foto: A personagem Leda (Olívia Colman) na praia, durante o filme. Crédito: Netflix/Divulgação.

Ao observar de longe aquele clã que transforma a paisagem litorânea, a personagem principal acaba se identificando com a jovem mãe Nina e sua filha pequena, Elena, enquanto analisa o carinho entre ambas e a relação de afeto que a criança tem com a boneca Nani. A relação entre todas elas, que inicialmente parece ser perfeita, vai sendo desconstruída aos poucos, conforme passam a interagir.

Essa aproximação, porém, acaba desencadeando na protagonista uma série de lembranças dolorosas e desconcertantes sobre a sua relação com a maternidade. É assim que descobrimos que Leda teve sua primogênita, Bianca, ainda muito jovem, aos 23 anos, e pouco tempo depois deu à luz Marta.

Foto: Jessie Buckley faz o papel da protagonista Leda na juventude. Crédito: Yannis Drakoulidis. Netflix/Divulgação.

A professora, que até então tinha uma trajetória cheia de oportunidades na carreira na universidade, passa a sentir que essa parte da sua vida havia acabado. Em pouco tempo, ela se separa do marido e deixa com ele as duas filhas, ainda pequenas, praticamente sem aviso prévio, para se reencontrar como mulher.

 

UMA OBRA POLÊMICA QUE DESPERTA SENSAÇÕES DIVERSAS 

Em uma narrativa em que os sentimentos de alívio e culpa se misturam, A filha perdida pode ser considerado um livro brutalmente sincero. Ao mesmo tempo em que Ferrante choca ao mostrar uma personagem espinhosa, astuciosa e pouco afetuosa, que se mostra aliviada e libertada por não ter mais o “peso” da presença das filhas, ela também revela camadas de culpa, sofrimento, infelicidade, cansaço, remorso e obrigação ao apresentar o despedaçamento e a reconstrução de Leda.

É justamente por isso que a obra é tão polêmica. Ao revelar a ambiguidade da maternidade, a escritora exprime, de certa forma, o fim da romantização dessa experiência, além das complexidades presentes no ato de ser mulher. Alguns críticos, inclusive, chegaram a levantar discussões sobre a verossimilhança da personagem Leda. Afinal, seria possível existir, no mundo real, uma mulher como ela?

 

UMA AUTORA REPLETA DE MISTÉRIOS 

Mais que uma escritora, Elena Ferrante é um fenômeno da literatura contemporânea. Conhecida apenas pelo seu pseudônimo, que gera mistério e teorias sobre a sua identidade, ela nunca mostrou o rosto e nem sequer deixou pistas sobre o seu verdadeiro nome. O segredo é grande. Tanto é que a autora não promove seus livros, jamais recebe prêmios e, quando concede entrevistas, que são raras, é somente por e-mail, com intermédio de seus editores.

Mas é claro que um sucesso literário como o dela não deixa de ser alvo de especulações. Uma das possibilidades mais repercutidas é a de uma investigação de 2016 feita pelo jornalista Claudio Gatti, que seguiu as faturas e os pagamentos da editora responsável pela obra de Elena. Em um artigo publicado em diversos veículos internacionais, como o The New York Review of Books, a identidade da autora foi atribuída à Anita Raja, tradutora dessa mesma editora e esposa do escritor napolitano Domenico Starnone, cujo apelido era Nino – assim como o personagem Nino Sarratore, da tetralogia napolitana, saga que consagrou a autora.

Há também outras suspeitas: que a escritora seja realmente uma mulher, que já teria sido mãe e que tenha nascido em Nápoles, morado na Grécia e estudado os clássicos gregos e latinos. Essas últimas indicações vêm, principalmente, do seu maior sucesso, A amiga genial, que muitos especialistas consideram ser um livro autobiográfico.

Apesar do mistério ainda a ser desvendado, há muitos aspectos de Ferrante revelados em seus livros. Ela é conhecida como uma das maiores romancistas do nosso tempo e como uma das principais conhecedoras do universo feminino. Na criação de suas personagens, fica evidente o mergulho na alma feminina. Essa autenticidade leva o leitor a se identificar com cada mulher apresentada por ela.

Em uma de suas esporádicas entrevistas, concedida exclusivamente ao jornal O Globo, a autora confessou que prefere se expressar com a escrita, um meio onde tem amplo controle. Também revelou o que, para ela, é essencial em um bom livro: “Uma boa narrativa é uma mentira que diz verdades que de outra forma são impronunciáveis” disse.

Além dos romances da tetralogia napolitana, que a levaram a ter projeção internacional, a autora italiana tem em sua bibliografia outros romances e tipos de narrativas, como a publicação infantil Uma noite na praia e a não ficção Frantumaglia.

 

O FILME

A filha perdida já fazia sucesso entre os leitores de Elena Ferrante desde 2006, ano de seu lançamento. Mas a obra ganhou projeção mundial recentemente, após sua adaptação para o cinema chegar ao catálogo da Netflix no último dia de 2021. Praticamente um filme de mulheres para mulheres, o longa-metragem homônimo foi adaptado pela atriz norte-americana Maggie Gyllenhaal, marcando a estreia da artista como diretora.

Foto: Capa do filme no catálogo da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação.

A produção também assinala a primeira vez em que uma obra de Ferrante é adaptada por uma mulher e traz em seu elenco um time feminino que soma ainda mais força ao filme, com a britânica Olivia Colman interpretando Leda na meia-idade e a irlandesa Jessie Buckley dando vida à protagonista na juventude. Há ainda a estadunidense Dakota Johnson, que ficou com o papel da instigante Nina.

Foto: Dakota Johnson interpreta Nina no filme. Crédito: Netflix/Divulgação.

Poucos dias após o seu lançamento, o longa já havia se transformado no terceiro filme de língua inglesa mais assistido na Netflix, aparecendo no Top 10 de 94 países onde a plataforma de streaming está em operação. O sucesso não foi só entre o público: a produção também agradou aos críticos e tem arrecadado prêmios e indicações em diversos festivais pelo mundo. O drama foi o grande vencedor do Gotham Awards 2021, do  37o Independent Spirit Awards e também garantiu estatuetas no Festival de Veneza de 2021 e no Globo de Ouro de 2022.

Foto: Olivia Colman, Maggie Gyllenhaal e Dakota Johnson na estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em setembro. Crédito: Imprensa Intrínseca.

A expectativa de premiações ainda é grande com a chegada do Oscar 2022. O longa-metragem concorre em três categorias: melhor roteiro adaptado para Maggie e também com as duas estrelas que dão vida à Leda – Olivia disputa o troféu de melhor atriz e Jessie busca a estatueta de atriz coadjuvante.

Foto: Olivia Colman interpreta Leda na versão cinematográfica e concorre ao Oscar pela atuação. Crédito: Yannis Drakoulidis/Netflix.

O filme, porém, é acusado por alguns fãs de deixar algumas lacunas na história, apesar de cumprir muito bem o seu papel de adaptação para o cinema, reproduzindo boa parte dos diálogos originais na íntegra. Diferente do livro, não é narrado em primeira pessoa e apresenta a história a partir do olhar da câmera, se limitando a mostrar os acontecimentos – o que pode dificultar ainda mais para o público decifrar uma personagem tão complexa como Leda.

 

QUEM SERÁ A FILHA PERDIDA NESTA HISTÓRIA?

A narrativa deixa muitas brechas para a interpretação do título. A filha perdida poderia ser Bianca, uma das filhas de Leda, que desaparece brevemente em uma das memórias da trama. Poderia ser também Nani, a boneca de Elena, que ganha ares e protagonismo como os de uma filha em determinados momentos da narrativa. Ou até mesmo a boneca de Leda, Mina, que repercute em uma de suas lembranças. O nome da obra, porém, pode apontar ainda para um aspecto mais abrangente, do rompimento que se dá na relação da personagem principal com as filhas, após abandoná-las.

No filme, a diretora Maggie Gyllenhaal explora ainda mais a ambiguidade desse título. No livro, sabemos desde as primeiras páginas sobre a existência, ainda em vida, das filhas de Leda. Já na obra cinematográfica é criado um suspense maior, principalmente no começo da trama, que pode passar a sensação de que uma das filhas da personagem principal já tenha falecido.

Foto: A diretora Maggie Gyllenhaal e as atrizes Olivia Colman e Dakota Johnson. Crédito: Yannis Drakoulidis/Netflix.

 

DICAS DO LING

Aqui, trazemos sugestões para todos os tipos de leitores de Elena Ferrante:

Para quem ainda não leu: A filha perdida está disponível para compra on-line tanto em formato de livro físico como e-book. A editora Intrínseca, responsável pela obra no Brasil, indica onde adquirir.

Para quem quer continuar lendo: a autora tem diversos de seus livros já traduzidos para o português. Que tal começar com a seleção feita pela psicanalista Marieta Madeira, parceira do Instituto Ling e leitora voraz da obra da escritora italiana? A professora indica o romance Um amor incômodo (1992), o primeiro da carreira da escritora, também lançado pela Intrínseca; além de dois títulos da editora Biblioteca Azul: Dias de abandono (2002) e A amiga genial (2015).

Para quem já leu toda a obra de Elena Ferrante: Ficou querendo mais? A revista Elle sugere dez livros, escritos por outras mulheres, que podem ajudar a aliviar esse vazio.

 

REFERÊNCIAS

BOHRER, Elis. O final perturbador do filme A filha perdida. Site Mais Minas. Disponível em: https://maisminas.org/entretenimento/filmes/o-final-perturbador-do-filme-a-filha-perdida/

CARNEIRO, Raquel. A Filha Perdida captura a essência das mulheres de Elena Ferrante. Site Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/tela-plana/a-filha-perdida-captura-a-essencia-das-mulheres-de-elena-ferrante/

DE SOUSA, Tatiane. A filha perdida. Site Vós. Disponível em: https://vos.social/reportagens-especiais/a-filha-perdida/

FERRANTE, Elena. A filha perdida. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. 176 p. 

MEIRELES, Maurício. Elena Ferrante: Prefiro me expressar com a escrita, com amplo controle. Site O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/elena-ferrante-prefiro-me-expressar-com-escrita-com-amplo-controle-16277809

PALHÃO, Marcela. As ambiguidades abordadas por Elena Ferrante invadem as telas. Site Harper’s Bazaar Brasil. Disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/cultura/as-ambiguidades-abordadas-por-elena-ferrante-invadem-as-telas/.

PAPO DE CINEMA. A filha perdida. Disponível em: https://www.papodecinema.com.br/filmes/a-filha-perdida/curiosidades/

VERDÚ, Daniel. O mistério de Elena Ferrante continua fascinando a Itália. Site El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/06/cultura/1573046745_374458.html#:~:text=Elena%20Ferrante%20%C3%A9%20o%20pseud%C3%B4nimo,de%20Ferrante%20(Nino%20Sarratore.