A cultura africana em forma de poesia
Nesta edição especial do Poesia no Ling, convidamos você a conhecer algumas das importantes vozes da poesia africana em língua portuguesa. Entre pioneiras e contemporâneas, a influência do território, das tradições e da religião na produção literária dessas mulheres, que ampliam a nossa percepção sobre a riqueza da cultura africana.
Ah, importante! No final dessa seção separamos várias dicas e curiosidades, incluindo o link para um vídeo do rapper Emicida onde declama o poema Súplica, de Noémia de Sousa.
Imagem: Divulgação.
PIONEIRAS
Alda Lara (1930-1962)
Precursora na poesia angolana Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu na cidade de Benguela (Angola) e na juventude mudou-se para Lisboa onde estudou medicina e participou da Casa dos Estudantes do Império (CEI), nesse período escreveu para importantes revistas e jornais da época e publicou alguns de seus poemas. Sua poesia trata principalmente da migração voluntária e involuntária, do sentimento de pertencimento e identidade a uma nação. A obra poética de Alda Lara foi reunida e publicada postumamente no livro Poemas (1966).
Prelúdio
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...
É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...
Alda Espírito Santo (1926-2010)
Escritora, poetisa, jornalista e professora nascida no arquipélago de São Tomé e Príncipe na década de 20, Alda é conhecida como uma das figuras mais importantes na poesia africana de língua portuguesa e por sua atuação na luta pela independência de seu povo da condição de colônia. Sua poesia fala de temas do cotidiano da ilha e do desejo de liberdade. Alda Graça, como também é chamada, chegou a ser deputada e Ministra da Cultura e Informação em São Tomé e Príncipe após a conquista da independência em 1975. Sua obra de poesia é composta pelos livros O jogral das ilhas (1976) e É nosso o solo sagrado da terra: poesia de protesto e luta (1978).
Em torno da minha baía
Em torno da minha baía
Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrentes
obre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num vôo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:
HUMANIDADE
- Alda do Espírito Santo, em "É nosso o solo sagrado da terra". Lisboa: Ulmeiro, 1978.
Noémia De Sousa (1926-2002)
Nascida no litoral sul de Moçambique, ela é conhecida como a “Mãe dos poetas moçambicanos” por sua influência nos poetas das novas gerações. Noémia de Sousa levou através de sua poesia a luta por liberdade do povo de Moçambique e a resistência da mulher africana para as páginas dos jornais de sua época. Seus poemas escritos entre 1948 e 1951 foram reunidos no livro Sangue Negro, publicado em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos.
Patrão
ah patrão, eu levantei
esta terra mestiça de Moçambique
com a força do meu amor,
com o suor do meu sacrifício,
com os músculos da minha vontade!
Eu levantei-a, patrão!
pedra por pedra, casa por casa,
árvore por árvore, cidade por cidade,
com alegria e com dor!
Eu a levantei!
Se teu cérebro não me acredita,
pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu,
quem subiu aos andaimes,
quem agora a limpa e a põe tão bonita,
quem a esfrega e a varre e a encera...
Pergunta ainda às acácias vermelhas e sensuais
como os lábios das tuas meninas,
quem as plantou e as regou, e, mais tarde, as podou...
Pergunta a todas essas largas ruas citadinas,
simétricas e negras e luzidias, quem foi que as alcatroou,
[...]
Pergunta quem morre no cais
todos os dias - todos os dias! -,
para voltar a ressuscitar numa canção…
E quem é o escravo nas plantações de sisal
e de algodão,
por esse Moçambique além…
E tu bate-mês, patrão meu!
Bates-me...
E o sangue alastra e há de ser mar...
Patrão, cuidado, que um mar de sangue pode afogar
tudo... até a ti, meu patrão!
Até a ti…
CONTEMPORÂNEAS
Ana Paula Tavares
Conhecida no Brasil como Paula Tavares, é uma escritora de destaque da poesia angolana que dedica-se ao trabalho como poeta, cronista, historiadora e professora. Atualmente é docente convidada na Universidade de Lisboa (Portugal) e também leciona na Universidade de Agostinho Neto, em Luanda (Angola). Na Universidade de Lisboa realizou o Mestrado em Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e o Bacharelado e a Licenciatura em História. Sua escrita tem influência de alguns autores brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge Amado. Entre as obras de poesia da autora destacam-se os livros Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ritos de passagem (2007) e Manual para amantes desesperados (2007).
(nota ao editor e ao diagramador: a grafia é assim mesmo: cerimónia. e o poema, por ser moderno, deve ser disposto assim)
Cerimónia secreta
Decidiram transformar
o mamoeiro macho em fêmea
prepararam cuidadosamente
a terra à volta
exorcisaram o vento
e
com água sagrada da chuva
retiraram-lhe a máscara
pintaram-no em círculos
com
tacula
barro branco
sangue…
Entoaram cantos breves
enquanto um grande falo
fertilizava o espaço aberto
a sete palmos da raíz.
Conceição Lima
Poetisa e jornalista nascida em 1961, em Santana, no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Formou-se em jornalismo em Portugal e fez licenciatura em Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros no King’s College, em Londres. Sua poesia faz um resgate ao passado cultural do povo são-tomense e trata das marcas deixadas pelo colonialismo. Suas obras de poesia publicadas são O Útero da Casa (2004), A Dolorosa Raiz do Micondó (2006), O País de Akendenguê (2011) e Quando Florirem Salambás no Tecto do Pico (2015).
Circum-Navegação
Os homens regressam
Carregados de cidades e distância.
Adormecem os grilos.
Uma criança escuta a concavidade de um búzio.
Talvez seja o momento de outra viagem
Na proa, decerto, a decisão da viragem.
Aqui se engendram alquimias
Lentos hinos bordados em lacerações
Sossegaram os mortos
Há grutas e pássaros de fogo
Rebentos de incômodos recados.
O difícil ofício de lavrar a paciência.
Acontece a arte da viagem
Tanta aprendizagem de leme e remendo…
É quando o olho imita o exemplo da ilha
E todos os mares explodem na varanda.
Ana Mafalda Leite
Ana Mafalda Leite é poeta, professora e ensaísta luso-moçambicana. Nasceu 1956 em Portugal, mas cresceu e estudou em Moçambique. Atua como docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É Mestre em Literaturas Brasileiras e Africanas de Língua Portuguesa e Doutora em Literaturas Africanas. Algumas de suas obras de poesia são Em sombra acesa (1984), Canções de Alba (1989), Rosas da China (1999), Passaporte do Coração (2002) e Livro das Encantações (2005).
A escuridão da noite ecoando um céu infinito
pontilhado de luzes e uma terra
sem
fronteiras
pensou no teodolito, no sextante e na bússola que
dormiam sem direcção
o oriente oculto pela obscura densidade do sertão
tão diferente daquele outro dos indígenas de
mato grosso
De que valiam as minuciosas observações
geográficas do naturalista?
Batendo o som dos tambores batia seu coração
sem rumo
CURIOSIDADES
Em 2015, o rapper brasileiro Emicida declamou no Sesc Pinheiros, em São Paulo, o poema Súplica de Noémia de Sousa.
Você sabia que o hino de São Tomé e Príncipe foi escrito por Alda Espírito Santo? Independência Total foi adotado como hino nacional em 1975, após a independência do país.
Que tal assistir uma entrevista da poeta Paula Tavares disponível no YouTube da Editora Kapulana?
DICAS DO LING
Escute o poema Rumo de Alda Lara declamado por Jéssica Iancoski para o podcast de poesias declamadas Toma Aí Um Poema.
Ficou com vontade de ler mais sobre as nossas homenageadas? Separamos uma lista de alguns livros para vocês. Basta clicar no nome sublinhado!
Noémia de Sousa: Sangue Negro
Paula Tavares: Amargos como os frutos - Poesia Reunida
Conceição Lima: A dolorosa raiz do Micondó
Ana Mafalda Leite: Outras Fronteiras: fragmentos de narrativa
REFERÊNCIAS
Alda Lara, biografia vida e obra. Site Lusofonia Poética. Disponível em: <https://www.lusofoniapoetica.com/angola/alda-lara> Acesso em 09 out. 2020.
Biografia Conceição Lima. Editora Caminho. Disponível em: <https://caminho.leya.com/pt/autores/biografia.php?id=22896> Acesso em 09 out. 2020.
Biografia Noémia de Sousa. Editora Kapulana. Disponível em: <http://www.kapulana.com.br/noemia-de-sousa/> Acesso em 09 out. 2020.
Biografia Ana Paula Tavares. Editora Kapulana. Disponível em: <http://www.kapulana.com.br/ana-paula-tavares/> Acesso em 09 out. 2020.
Biografia Ana Mafalda Leite. Editora Kapulana. Disponível em: <http://www.kapulana.com.br/ana-mafalda-leite/> Acesso em 09 out. 2020.
GAUDALUPE, Elton Fábio. Alda Espírito Santo - Poetisa das ilhas maravilhosas. Site Zunta Cloçan. Disponível em: < https://zuntaclocon.com/la-no-agua-grande/#:~:text=No%20ano%20de%201976%2C%20publica,os%20anos%20de%201950%2D%201970.> Acesso em 09 out. 2020.
GONÇALVES, Paulo Sérgio. Terra e Resistência na poesia de Alda Espírito Santo. Disponível em: < https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/36810/26171> Acesso em 09 out. 2020.
ROCLAUDELO N’dafá de Paulo Silva Nanque. Poética diaspórica, ou o canto ambulante de Alda Lara. Revista África e Africanidades. Disponível em: <https://africaeafricanidades.net/documentos/33/Poetica%20diasporica%20ou%20o%20canto%20ambulante%20de%20Alda.pdf> Acesso em 09 out. 2020.
SCHMIDT, Simone Pereira. A poética de Conceição Lima e sua viagem entre mundos. ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura. Disponível em: <file:///C:/Users/MarianaK/Downloads/563-25-1074-1-10-20170525.pdf> Acesso em 09 out. 2020.
MINUZZI, Luara Pinto. Outras fronteiras: fragmentos de narrativa, de Ana Mafalda Leite. Disponível em: <file:///C:/Users/MarianaK/Downloads/33025-Texto%20do%20artigo-138171-2-10-20190115.pdf> Acesso em 09 out. 2020.
União dos Escritores Angolanos. Ana Paula Tavares: biografia. Disponível em: <https://www.ueangola.com/bio-quem/item/68-ana-paula-tavares> Acesso em 09 out. 2020.