A épica Odisseia e suas aventuras inesquecíveis
“De carne humana estás, Ciclope, farto;
Ora da nossa nau prova a bebida.
Mais terias, se à casa me enviasses
Por compaixão: que fúria intolerável!
Como, de tanta crueldade à vista,
Pode qualquer humano visitar-te?”
Recebe a taça, com delícia a empina,
E pede mais: “Dá-me de novo, dá-me;
O nome teu me digas, para haveres
Dom que te aprazirá.
Nossa alma terra
Vinho de uvas produz que orvalha Jove;
Mas este, ambrosia é doce e néctar puro.”
Renovo a taça ardente, que três vezes
Néscio esgotou. Sentindo-o já toldado,
Brando ajunto: “Ciclope, não me faltes
À promessa. Meu nome tu perguntas?
Eu me chamo Ninguém, Ninguém me chamam
Vizinhos e parentes.” O ímpio e fero
Balbuciou: “Ninguém, depois dos outros
Último hei de comer-te; eis meu presente.”
A Odisseia serviu de inspiração para Camões, Virgílio, James Joyce, García Márquez, Guimarães Rosa. Continua e continuará a desassossegar a literatura ocidental. Trata-se da sequência narrada na Ilíada, também de autoria do poeta grego Homero, o pai da mitologia e verdadeiro deus do Olimpo, ao dar vida aos deuses, heróis e monstros que conhecemos universalmente. No poema épico, temos o herói Ulisses — responsável por arquitetar o famoso Cavalo de Troia na Ilíada — tentando voltar para sua casa, na ilha de Ítaca. No caminho de volta, ele vive diferentes aventuras. Desperta a ira de Poseidon, deus dos mares, e precisa se esconder na Ilha de Calipso. Enquanto isso, sua esposa, Penélope, é assediada por diversos pretendentes e usurpadores. Para resgatar a mulher e o patrimônio de sua família, Ulisses enfrenta uma série de aventuras fantásticas através dos mares e das ilhas gregas até regressar aos braços de Penélope e de seu filho, Telêmaco.
Ulisses é o nome em latim para Odisseu, o nome grego. Ele é o herói que domina o poema, com sua figura versátil, astuta e corajosa. A narrativa não é linear, pois ela avança e retorna no tempo algumas vezes. O livro começa em Ítaca e mostra os pretendentes da virtuosa Penélope ocupando a casa e assediando a esposa de Ulisses ou Odisseu, que está desaparecido. Na primeira parte do livro (cantos I a IV), Telêmaco é a personagem principal: ele está a procura de seu pai, de quem se tem pouquíssimas informações. Na segunda parte do livro (cantos V a XII), é o próprio Ulisses quem narra suas histórias: ele e seus homens sobrevivem a doze perigosas aventuras. Já na terceira e última parte (cantos XIII a XXIV), o herói regressa à Ítaca, com o auxílio de Palas Atena. Lá, ele precisa derrotar os pretendentes que cobiçam sua mulher e seus bens.
A Odisseia é um poema de aventura, que traz o espaço fantástico para a literatura. Afinal, não há exército capaz de vencer Odisseu, então é preciso criar obstáculos sobre-humanos: seja derrotando o ciclope Polifemo, visitando Hades, fugindo do canto das sereias, enfrentando a ira de Poseidon ou, ainda, a Natureza. A última ataca com mares desconhecidos, estreitos rochosos, tempestades; ela espanta desde sempre até o mais corajoso dos homens. Somente usando toda a sua inteligência, destreza, coragem e força é possível vencê-la. Odisseu é a figura singular capaz de enfrentar todas essas aventuras para alcançar seu objetivo.
A Odisseia (juntamente com a Ilíada) fundou a ideia de herói, esse sujeito que precisa desfrutar de seu reconhecimento. Por isso é interessante notar que Odisseu começa o livro na Ilha de Calipso e que permanecer lá, apesar da imortalidade prometida, significava desaparecer. Voltar para Ítaca, nesse sentido, é também viver com a fama e as glórias de um herói de guerra. Porém, em dois momentos cruciais da história, Odisseu nega sua identidade a fim de salvar sua vida. O primeiro episódio surge no confronto com Polifemo: ao ter seu nome perguntado pelo ciclope, Odisseu responde: “Eu me chamo Ninguém”. Quando consegue escapar da caverna de Polifemo, este grita por ajuda: “Ninguém me mata”. Os amigos do ciclope pensam que ele está louco e Odisseu consegue escapar, mas não sem antes revelar-lhe seu verdadeiro nome, afinal, é necessário que sua façanha e sua identidade sejam amplamente conhecidas. Quando finalmente chega a Ítaca precisa mais uma vez anular quem é, já que enfrentar centenas de pretendentes ao mesmo tempo seria uma loucura irracional, o que em nada combina com a moderação e a sagacidade que são marcas de Odisseu. Ele, então, se veste como mendigo e, com ajuda de fiéis funcionários, vai aniquilando um por um de seus adversários. Ou seja, ele torna-se “Ninguém” novamente, para que possa, enfim, ser o grande Odisseu e poder desfrutar não só de sua família, mas também de toda a sua glória.
Odisseu é — nas palavras de Homero — polítropo, ou seja, alguém com muitas habilidades, que tem uma inteligência versátil e que, por ter viajado muito, adquiriu conhecimento sobre seu povo e os lugares que conheceu. O herói de muitas faces é um contraponto a Aquiles, da Ilíada, cuja fúria implacável não respeita e não conhece limites. Ele é passional e explosivo, enquanto Odisseu sabe exatamente como agir. Atua como orador, marinheiro, amante, guerreiro, atleta, poeta, pai, filho, artesão etc. Ele é um que é muitos. Ele é todos e é ninguém. Talvez por isso tenha inspirado tantos, talvez por isso continue a inspirar muitos.
Representação do herói Ulisses. Foto: Getty Images
AUTOR
Homero é um dos principais e mais intrigantes autores da literatura ocidental, pois não constam fatos que comprovem sua existência. Os gregos antigos acreditavam que ele fora um rapsodo* cego, que viveu na Grécia e viajava pelas cidades, recitando seus poemas em lugares públicos e cortes – *o termo rapsodo era utilizado para denominar artistas populares, como poetas e cantores viajantes. Sobre a vida de Homero até hoje não se sabe ao certo o período em que viveu, mas suas obras foram escritas no século VIII a.C. A respeito da autoria das obras, Ilíada e Odisseia, temos duas linhas de pensamento: os analíticos, que acreditam que foram criadas por vários poetas, e os unitários, aqueles que defendem uma autoria única. Mesmo sendo fruto da tradição oral, é possível notar a presença de um poeta central nas obras homéricas, o que reforça a linha de pesquisa que atribui a Ilíada e a Odisseia a um único autor.
Representação de Homero. Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
CURIOSIDADES
Um dos romances mais renomados do último século, Ulisses, de James Joyce, é uma versão moderna da Odisseia, de Homero. Nela, Leopold Bloom faz as vezes do herói grego, Odisseu, enquanto sua esposa, Molly Bloom, vive Penélope e Stephen Dedalus representa Telêmaco.
Em 2019, a artista Lenir de Miranda expôs uma série de trabalhos que dialogava com o personagem Ulisses, tanto de Homero quanto de Joyce. A exposição Pintura Périplo, curada por Paula Ramos e Icleia Borsa Cattani, esteve em cartaz no MARGS.
A banda escocesa Franz Ferdinand se inspirou no herói grego para compor a canção Ulysses. Assista ao clipe da música.
O poeta argentino Jorge Luis Borges fala de Ulisses em Arte Poética. Leia a poesia.
DICAS DO LING
Ficou com vontade de ler? Veja onde comprar:
L&PM Editora (edições bilíngues) Odisseia I - Telemaquia | Odisseia II - Regresso | Odisseia III - Ítaca
Companhia das Letras | Editora 34 (edição bilíngue)
Ubu Editora (ilustrado) | Edusp (ilustrado)
Domínio Público (gratuito em espanhol) | Domínio Público (gratuito em inglês)
A Odisseia, de Homero já foi adaptada para o cinema e a televisão tendo como principais produções: Ulisses (Mario Camerini, 1954), Odissea Nuda (Franco Rossi, 1961) e The Odyssey (Andrey Konchalovskiy, 1997).
REFERÊNCIAS
HOMERO. Odisseia, v.2: Regresso / Homero; tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. - Porto Alegre, RS: L& PM, 2008. v. - (L & PM; 602)
FACCENDA, Stella. Odisseia: Uma análise mitológica da epopéia de Homero. Trabalho Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras Português/Inglês), 2009, 63 f. Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da universidade do Tuiuti, Paraná, 2009. Disponível em: https://tcconline.utp.br/media/tcc/2015/06/ODISSEIA-UMA-ANALISE-MITOLOGICA-DA-EPOPEIA-DE-HOMERO.........pdf. Acesso em: 16/07/2020.
Youtube da UNIVESP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38QJQmaFuOE. Acesso em: 15/07/2020.
JÁCOME, Félix. Cinquenta anos da melhor adaptação da Odisseia para o Cinema: A série televisiva de Franco Rossi, para o site Instituto Mundo Antigo. 2018. Disponível em: https://institutomundoantigo.com.br/cinquenta-anos-da-melhor-adaptacao-da-odisseia-para-o-cinema-a-serie-televisiva-de-franco-rossi/. Acesso em: 15/07/2020.