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Saiba mais sobre o Bloomsday, data que celebra o protagonista do clássico da literatura Ulysses

Leopold Bloom viveu no dia 16 de junho de 1904 a jornada que fez dele um dos mais conhecidos personagens da literatura mundial. Apresentado pelo escritor irlandês James Joyce no romance Ulysses, Bloom inspira a celebração da data que neste ano de 2022 é ainda mais emblemática, por marcar os 100 anos do livro publicado em 2 de fevereiro de 1922.

 

A odisseia de Leopold Bloom

Nestes 100 anos, Ulysses ganhou o status de um clássico, ao mesmo tempo desafiador, instigante e prazeroso. Joyce convida o leitor a adentrar em um denso e multifacetado universo e acompanhar seus principais personagens por cerca de 18 horas, das 8h da manhã de 16 de junho até o começo da madrugada do dia seguinte.

Seguimos os passos do protagonista, Leopold Bloom, pela cidade de Dublin. Ele é filho de um imigrante judeu húngaro que se suicidou, histórico que tem considerável peso na sua construção como herói trágico e deslocado em um país fortemente católico como a Irlanda  e no contexto de um secular e não raro violento antissemitismo. Bloom vive com sua mulher, Molly Bloom, com quem tem uma filha adolescente.

Outro personagem importante é um dos amigos de Bloom, Stephen Dedalus, visto como alter ego de Joyce no primeiro romance do escritor, Retrato do Artista Quando Jovem, lançado em 1916. Dedalus vivia em Paris e, em razão da morte de sua mãe, voltou para Dublin, onde trabalha como professor.

Entre sair e voltar para casa, Bloom percorre caminhos e vive situações espelhadas na aventura mitológica de Odisseu (Ulisses na tradução latina) no poema épico Odisseia, datado por volta do século VIII a.C e com autoria atribuída ao grego Homero – a narrativa em 24 cantos trata de eventos que se passam logo após a Guerra de Troia, com a longa viagem de volta feita por Ulysses (grafia adotada na mais recente tradução brasileira livro), rei de Ítaca, onde o esperam sua mulher, Penélope, e seu filho, Telêmaco.

Se Bloom emula Ulysses vencendo uma série de eventos antes de retornar para casa, Molly é o oposto da resiliente Penélope. Por sua vez, Dedalus vive momentos de impasse afetivo e profissional no início de sua vida adulta e Bloom, alguns anos mais velho, nutre por ele um sentimento patriarcal.

 

Pelas ruas de Dublin

Antes de Bloom entrar em cena, é Dedalus quem protagoniza as três primeiras partes de Ulysses, a partir das 8h. O professor discute com seu companheiro de morada na torre de um antigo forte, dá uma aula de história a seus jovens alunos e encontra o preconceituoso diretor da escola em que trabalha. Mais adiante, solitário em uma praia, Dedalus divaga sobre os rumos de sua vida.

No quarto segmento, a narrativa volta no tempo e, também às 8h, passa a seguir Bloom em diferentes situações, como preparar uma refeição para Molly, pensar no funeral de um amigo, ir ao posto do correio, à igreja, à farmácia e à redação do jornal para o qual comercializa anúncios. Em suas andanças, ele remói a convicção de estar sendo traído pela esposa.

Bloom passa ainda, entre outros lugares, por uma maternidade, onde uma amiga está em trabalho de parto, e, já na companhia de Dedalus, por um bar e um bordel. Chega em casa às 2h da madrugada. As caminhadas e encontros despertam digressões, conversas e reflexões sobre temas como relacionamentos, família, sexo, política e religião, que Joyce costura com referências literárias, filosóficas, científicas e históricas.

 

Caleidoscópio narrativo

James Joyce lançou mão em Ulysses de recursos narrativos de grande ousadia formal e de um inovador arrojo linguístico, elementos que se tornariam canônicos na literatura moderna. Cada um dos 18 episódios do livro traz estilos literários distintos – como prosa, narração, diálogo e solilóquio – acompanhando diferentes vozes e não as identificando facilmente para o leitor. Para dar fluxo à oralidade do texto, Joyce criou um vocabulário particular, nventando palavras e juntando outras para formar novas expressões. Ulysses traz, por exemplo, uma passagem toda construída com perguntas e respostas e o antológico desfecho com o monólogo de Molly Bloom, um longo fluxo de consciência sem parágrafos e pontuação.

Diante da falta de uma “voz guia”, explicativa e didática, Joyce lança o desafio de identificar se determinada frase foi dita ou pensada por um personagem, se vem de um narrador, se o que está ali é “real” ou alegórico. Sua intenção foi a de proporcionar uma experiência sensorial em que o leitor buscasse, mediante algum esforço intelectual, sua própria compreensão da jornada.  

 

Enigma a ser decifrado

A estrutura aparentemente caótica, a alternância de técnicas narrativas, o intrincado jogo de palavras e as múltiplas referências incorporadas na trama exigem do leitor de Ulysses máxima concentração e disposição para vencer suas mais de 800 páginas (na mais recente edição brasileira, lançada em 2022 pela Companhia das Letras, em razão do centenário do livro).

O próprio Joyce reconhecia que Ulysses era como uma espécie de quebra-cabeças e que a dificuldade imposta por sua leitura poderia assegurar que o romance permanecesse vivo ao longo dos séculos, lido e relido como um enigma a ser decifrado.

Pouco antes do lançamento de Ulysses, Joyce endereçou a amigos esquemas de leituras. Neles, sintetizava em tabelas as referências colocadas em cada um dos 18 capítulos. A súmula informa a hora em que se passa determinada ação, os personagens mitológicos a ela relacionados, a ciência referida e a técnica narrativa empregada. Traz ainda associações com textos clássicos (Shakespeare em especial), cores, órgãos do corpo humano e símbolos de variadas procedências.

 

Nascimento entre censura e erros

Por conta dos palavrões e de pormenores sexuais e escatológicos descritos por Joyce, Ulysses recebeu rótulos como “obsceno”, “imoral” e “pervertido” e enfrentou problemas com a censura em muitos países. O livro foi publicado primeiro na França, onde Joyce vivia à época, por iniciativa da famosa livraria Shakespeare and Company. Naquele 2 de fevereiro de 1922 o escritor comemorava seu aniversário de 40 anos.  A primeira edição inglesa, impressa na França, foi lançada também em 1922, em outubro. A versão produzida na Inglaterra só chegaria em 1936. Por sua vez, a primeira edição nos Estados Unidos foi pirata, em 1929, a partir de um original inglês. A versão oficial é de 1934.

Mas bem antes, entre 1918 e 1920, Ulysses começou a circular nos EUA da forma seriada, pela revista literária Little Review, e virou alvo de entidades conservadoras, que, apontando trechos avaliados como um atentado à moral e aos bons costumes, buscavam a apreensão e a destruição de cópias.

 

Sucesso de crítica, mas não de público

Ulysses ganhou uma aclamação imediata entre muitos críticos, escritores e acadêmicos. T. S. Eliot destacou no sistema criativo de Joyce "uma maneira de controlar, de ordenar, de dar uma forma e um significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”. Disse ainda considerar Ulysses “como a expressão mais importante da época atual; é um livro do qual todos somos devedores e de que ninguém pode escapar". Já entre os detratores, uma das vozes de destaque foi a escritora Virginia Woolf, que tachou o livro como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre".

Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná, Caetano W. Galindo é autor da mais recente tradução de Ulysses para o Brasil, na edição de 2012 da Penguin, revista para a atual versão comemorativa dos 100 anos do livro. Em entrevista ao jornal Zero Hora, Galindo destacou que foi só nos anos 1960 que o livro começou a se firmar como clássico junto a um público maior:

“Antes, Ulysses era basicamente um livro pouco lido, pouco visto, porque era proibido na maioria dos países, por ser considerado indecente, e portanto não tinha uma grande fortuna crítica. Era um livro que tinha muita influência entre os escritores, entre os críticos, mas entre o público em geral a influência era quase nula. A partir dos anos 1960, ocorre essa virada crítica e editorial (...). Há quem já tenha ligado isso ao surgimento da contracultura, à ideia de valorização desse lado sujo e inclusive indecente do Ulysses. É a partir daí que o livro ganha uma popularidade maior. Se é que a gente pode falar em popularidade de um livro que até hoje é muito pouco lido”.

Sobre o legado do livro, o tradutor destaca:

“Certas referências hoje são muito difíceis de entender, certos fatos ligados ao contexto da época ficaram um pouco mais distantes, mas esteticamente e tecnicamente ele não envelheceu um dia. Eu ouvi isso já de escritores e de romancistas brasileiros novos e mais velhos: o livro parece que foi escrito ontem (...) É óbvio que não é fácil, é óbvio que não é direto, nem simples e singelo, mas não tem nada de intocável ou de torre de marfim”.

 

O desafio da tradução

Se em seu idioma original Ulysses apresenta desafios na leitura, por conta das inovações narrativas e das experimentações de Joyce com a língua inglesa, traduzir o livro para outros idiomas foi sempre uma missão espinhosa.

A primeira edição brasileira foi publicada em 1966, com tradução do filólogo Antônio Houaiss. O trabalho foi bem recebido à época. Mas tem quem avalie a versão como rebuscada e por demais erudita, resultando numa leitura truncada. Em 2005, o livro ganhou nova tradução, assinada pela filósofa Bernardina da Silveira Pinheiro, que buscou um tom mais coloquial e acessível. Em ambas as versões o título é grafado Ulisses.

Essas duas edições estão entre as analisadas pela professora e doutora em letras Maria Teresa Quirino em Uma Odisséia Tradutória do Ulysses – Análise de Traduções da Obra de James Joyce. Em seu trabalho, que abrange edições do romance em diferentes países, Quirino traz o depoimento do escritor Luis Fernando Verissimo sobre a missão hercúlea: “Traduzir Ulisses é tão difícil que em muitos lugares sua edição na língua local é considerada uma prova de maioridade intelectual (...) O Brasil e o português estão bem nesse torneio de egos culturais. Já temos duas traduções de Ulisses, a do Antônio Houaiss e agora essa da Bernardina da Silveira Pinheiro (...) Imagino que o grande desafio para um tradutor de Joyce seja a tentação de tornar o seu texto mais claro, o que daria a leitores em outras línguas um privilégio que leitores do original não têm. O tradutor, no caso, seria um ‘traditore’ de tipo especial, roubando do texto os enigmas intencionais do autor e o charme da obscuridade. De qualquer maneira, toda tradução de Ulisses é, antes de mais nada, uma interpretação de Ulisses.

 

Bloomsday para o mundo

O 16 de junho de 1904 que emoldura os acontecimentos de Ulysses era uma data simbólica para James Joyce, por marcar sua primeira relação sexual com Nora Barnacle, parceira de passeios por Dublin e futura esposa.

A celebração deste dia como um evento cultural começou em 1954. À época, para lembrar os 50 anos da jornada de Bloom, foi organizada em Dublin uma peregrinação pela rota percorrida pelos personagens. A homenagem foi ganhando corpo ao longo dos anos e se espalhou por outros países. Chegou ao Brasil, com esse formato de festa literária, nos anos 1980, por São Paulo, com o poeta Haroldo de Campos entre os organizadores. Mas já em 1924, o próprio Joyce comentava em correspondência a sua amiga e apoiadora Harriet Weaver que havia quem se referisse ao 16 de junho como o “dia de Bloom”.

 

Dicas do Ling

Em razão dos 100 anos da publicação de Ulysses, a editora Companhia das Letras lançou em 2022 uma edição especial do livro, com a tradução revisada de Caetano W. Galindo, gravuras de Robert Motherwell e fortuna crítica com textos inéditos.

Galindo também é autor de um manual de leitura para o livro. Em Sim, Eu Digo Sim – Uma Visita Guiada ao Ulysses de James Joyce, ele destrincha particularidades da jornada dos personagens, o processo de construção do romance e as referências usadas por Joyce.

No dia em que Ulysses comemorou 100 anos de lançamento, 2 de fevereiro de 2022, o tradutor Galindo ministrou uma aula aberta sobre o livro no blog da editora Companhia das Letras.

As tentativas de adaptar o sofisticado e intrincado universo narrativo de Ulysses para o cinema resultaram, até agora, em produções nada memoráveis. A primeira, de 1967, segue como a referencial e melhor avaliada. Com direção de Joseph Strick, o filme britânico, no Brasil chamado Alucinação de Ulisses, pode ser visto no YouTube (com legendas em inglês). Ganhou uma indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado.

Entre outras adaptações para o cinema estão Bloom (2003), com Stephen Rea no papel protagonista. A mais recente é a ainda inédita The Ulysses Project, em fase de pós-produção. O elenco reúne nomes como John Turturro,  Aidan Gillen e Patrick Bergin.

A professora de literatura irlandesa Munira Hamud Mutran, do Departamento de Letras Modernas na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, fala sobre Ulysses.

 

Referências

DOSSIÊ JAMES JOYCE - Um guia para entender Ulysses
Disponível em https://www.blogletras.com/2008/07/dossi-james-joyce_16.html

FOLHA DE S.PAULO. Como James Joyce revolucionou o romance moderno com Ulisses, que completa 100 anos
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/como-james-joyce-revolucionou-o-romance-moderno-com-ulisses-que-completa-100-anos.shtml

QUIRINO, Maria Teresa. Uma Odisséia Tradutória do Ulysses – Análise de traduções da obra de James Joyce.

Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-06112007-112007/publico/TESE_MARIA_TERESA_QUIRINO.pdf

ZERO HORA. No dia em que o mundo celebra a obra de James Joyce, confira entrevista com tradutor de Ulysses

https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/06/no-dia-em-que-o-mundo-celebra-a-obra-de-james-joyce-confira-entrevista-com-tradutor-de-ulysses-3792904.html