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“Anna Kariênina” pinta na infelicidade íntima um grande painel histórico e social

Monumento literário

Guerra e Paz já seria suficiente para consagrar Liev Tolstói (1828-1910) entre os maiores escritores de todos os tempos. Menos de dez anos depois, porém, o mestre russo apresentava outra saga colossal e ainda mais popular, Anna Kariênina. Reunido em livro em 1878, após a publicação em capítulos iniciada em 1875 na revista Mensageiro Russo, o romance seguinte de Tolstói também apresenta um painel da Rússia imperial costurando relações familiares, fatos históricos e crônica política e social.

Em Anna Kariênina, o mosaico de Tolstói tem menos peças e centra o foco em um grupo mais restrito de personagens envolvidos em uma trágica ciranda amorosa. Sua comunicação com o leitor é mais direta. Uma das razões para o imenso sucesso do livro em diferentes países, e sua permanente consagração como clássico literário atemporal, é o tom folhetinesco que perpassa o apuro narrativo lapidado pelo autor. Como disse o escritor Vladimir Nabokov no livro Lições de Literatura Russa, a razão de se ler Tolstói é porque simplesmente não se pode parar.

O romance carrega por suas mais de 800 páginas e oito capítulos a jornada de sua protagonista. Anna Kariênina é uma bela aristocrata casada com Aleksei Kariênin, importante servidor do tsar, com quem tem um filho pequeno. Ela viaja de São Petersburgo para Moscou atendendo ao chamado de seu irmão, Stiepan “Stiva” Oblónski, que enfrenta uma crise doméstica. Dolly, sua esposa, descobriu que ele, tipo perdulário e mulherengo, a traiu com a governanta da família.

Ao desembarcar na estação de trem, Anna conhece o garboso conde Aleksei Vrónski, oficial da cavalaria, que espera por sua mãe. É o início de uma paixão fulminante que faz Anna questionar a vida apática que leva ao lado do marido a quem não ama e acha pouco atraente. Em busca da felicidade, Anna espera obter o divórcio e encara com Vrónski a rejeição de suas famílias e o preconceito da sociedade. Tentam recomeçar a vida na Itália, mas retornam para cumprir a sina à qual parecem estar condenados.

 

Vidas paralelas

Embora Anna desponte como a protagonista da trama, outro personagem ganha relevo: Konstantin Liévin, amigo de Stiva e pretendente de Kitty, irmã mais nova de Dolly. Pequeno proprietário de terras, Liévin é como um alter ego de Tolstói. Prefere viver na tranquilidade rural, de onde observa com interesse e certa mordacidade a movimentada rede de poder, riqueza, interesses, traições e falsas aparências que o cerca. Nas digressões de Liévin, o autor aborda questões sociais e políticas que impulsionaram a revolução comunista de 1917.

Como observa Rubens Figueiredo na apresentação de sua tradução do romance para o português, na edição da Companhia das Letras, Tolstói leva sua narrativa por trilhas paralelas, daí a constante referência na história aos trilhos do trem. E lança pelo caminho duplos pontos de contraste: entre outros, homem/mulher, Moscou/São Petersburgo, aristocratas/mujiques (camponeses), campo/cidade, arcaico/moderno. Os títulos pensados nos primeiros rascunhos do livro acentuavam a intenção do autor de transitar por universos duplos e independentes: Dois Casamentos e Dois Casais. Embora sejam personagens espelhados, Anna e Liévin encontram-se apenas uma vez na trama.

Se em Guerra e Paz as Guerras Napoleônicas que ameaçam o império russo emolduram o pano de fundo histórico da trama, em Anna Kariênina o conflito destacado é menos famoso: o engajamento da Rússia ao lado de sérvios e montenegrinos contra os turcos otomanos que dominavam a região dos Bálcãs. A descrição crítica que fazia desta guerra, soma de disputa territorial e intolerância religiosa, fez Tolstói ser censurado pelo editor nacionalista que vinha publicando os capítulos. O autor publicou o desfecho da história por conta própria.

Anna Kariênina traz impressa ainda a nova Rússia que emerge sob a mão de ferro do governo imperial. É uma nação mais cosmopolita e aberta ao Ocidente, com uma elite criada pela acelerada industrialização convivendo nos palácios com a aristocracia parasitária e sustentada pela herança feudal. Tolstói sublinha ainda a efervescência de temas que ganhavam corpo à época, como o papel da mulher na sociedade, as liberdades individuais e reformas nas estruturas políticas e militares ancestrais.

 

Começo antológico

Tolstói escreveu Anna Kariênina entre 1873 e 1877, em sua propriedade rural ao sul de Moscou, após vencer um período que julgava ser de pouca inspiração. Desistiu de um romance histórico que não conseguia desenvolver e lembrou da história contada por um amigo, cuja amante se matou quando ele a trocou por outra. O escritor já havia pensado em uma história sobre mulher adúltera que escandaliza a alta sociedade. Ao tema da infidelidade, foi somando os debates que surgiam na Europa relacionados aos direitos da mulher, as mudanças pelas quais passava a Rússia e os retratos inspirados em figuras reais de seu tempo, incluindo familiares e ele próprio.

Buscou também elaborar uma nova forma narrativa, menos formal, com subtramas que correm lado a lado sem se cruzar, descrição de uma paixão menos romântica e idealizada, vocabulário mais simples e direto, descrições minuciosas de movimentos, repetições de palavras para enfatizar uma ideia e digressões para revelar pensamentos íntimos – Tolstói foi um pioneiro no recurso que ficaria conhecido como monólogo interior ou fluxo de consciência. Os leitores de Anna Kariênina são transportados para aquele mundo como se dele fizessem parte como observadores convidados para bailes, banquetes, passeios e discussões particulares.

Inspirado pelo início de um conto de Aleksandr Púchkin, que considerou perfeito na brevidade de seu impacto e poder de síntese do que viria pela frente, Tolstói imortalizou em Anna Kariênina um dos mais famosos começos da literatura.

 

"Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Tudo era confusão na casa dos Oblónski. A esposa ficara sabendo que o marido mantinha um caso com a ex-governanta francesa e lhe comunicara que não podia viver com ele sob o mesmo teto. Essa situação já durava três dias e era um tormento para os cônjuges, para todos os familiares e para os criados. Todos, familiares e criados, achavam que não fazia sentido morarem os dois juntos e que pessoas reunidas por acaso em qualquer hospedaria estariam mais ligadas entre si do que eles, os familiares e os criados dos Oblónski. A esposa não saia de seus aposentos, o marido não parava em casa havia três dias. As crianças corriam por toda a casa, como que perdidas; a preceptora inglesa se desentendera com a governanta e escrevera um bilhete para uma colega, pedindo que procurasse um outro emprego para ela; o cozinheiro abandonara a casa no dia anterior, na hora do jantar; a ajudante de cozinha e o cocheiro haviam pedido as contas".

 

O grande palco das emoções

Com o título de Anna Karenina, como o romance ficou conhecido nas primeiras traduções brasileiras, o longa-metragem de 2012  assinado por Joe Wright renovou a parceria do diretor com a atriz Keira Knightley, após duas outras elogiadas adaptações de sucessos literários, Orgulho e Preconceito (2005) e Desejo e Reparação (2007). Além de Keira no papel de Anna, o elenco conta com, entre outros nomes, Jude Law (Karenin, na grafia antiga), Aaron Taylor-Johnson (Vrónski) e Domhnall Gleeson (Liévin).

Imagem: Karenin, interpretado por Jude Law e Anna Kariênina interpretado por Keira Knightley. Crédito: Divulgação.

Wright optou por uma encenação estilizada, praticamente sem locações externas. Em um teatro desativado, foram construídos diferentes cenários. Algumas passagens de cena são mostradas com portas se abrindo para a câmera entrar e atores caminhando de um set ao outro, de um grande baile para uma estação ferroviária, de um cômodo a um restaurante. Para tomadas mais amplas, foram usadas maquetes e até trens de brinquedo. O resultado estético pode não agradar a todos, mas a engenhosidade de Wright consegue dar à narrativa uma fluidez que nada se parece com um teatro filmado.

Apesar de passar pelos principais pontos do livro, Anna Karenina, encontrou alguns reparos junto a admiradores do clássico e críticos: Liévin ganhou dimensão menor no filme, Wright ficou um tanto perdido entre o exagero espalhafatoso de Baz Luhrmann e a rigorosa suntuosidade de David Lean, e o artificialismo intencional desidrata a potência dramática da história. À época do lançamento, Wright argumentou que falta de maior realismo foi uma opção estética para se diferenciar tanto das locações russas recorrentes em outras adaptações do livro quanto das paisagens rurais vistas em seus dramas de época anteriores. Anna Karenina ganhou o Oscar de melhor figurino. Foi indicado também nas categorias de melhor fotografia, trilha sonora original e design de produção.

Imagem: Keira Knightley no papel de Anna Kariênina. Crédito: divulgação.

A agora chamada Anna Kariênina é uma veterana no cinema. A primeira adaptação do livro foi o filme russo homônimo que estreou em 1911, ano seguinte à morte de Tolstói. De lá para foram feitas dezenas de releituras da obra em produções para o cinema e para a televisão, além de espetáculos teatrais e musicais. Entre os filmes mais conhecidos estão dois clássicos dos anos dourados de Hollywood, protagonizados, respectivamente, por Greta Garbo (1935) e Vivien Leigh (1948). Entre outras atrizes conhecidas que deram vida à personagem estão Jacqueline Bisset, em um telefilme de 1985, e Sophie Marceau, no longa-metragem exibido nos cinemas em 1997.

Posterior ao filme de Wright, foram produzidas adaptações para a TV e o teatro. Uma minissérie em três episódios lançada em 2013 e falada em inglês reuniu profissionais de Itália, França, Espanha e Lituânia. Em 2017, o Balé de Hamburgo estreou um espetáculo que deu ambientação contemporânea à trama. Outra releitura para os palcos foi o musical produzido em parceria por Rússia e Coreia do Sul, que entrou em cartaz em 2018. Entre as adaptações em andamento, destaque para a série russa Anna K., prevista para 2023, que traz a tragédia amorosa para os dias de hoje.

 

Kariênina em vez Kerenina

As traduções mais recentes de Anna Kariênina para o português do Brasil são consideradas as melhores e mais fiéis, por serem feitas a partir do texto original em russo. São as de Rubens Figueiredo para a editora Cosac & Naify, em 2005, a mesma usada na edição de 2017 da Companhia das Letras, e a de Irineu Franco Perpétuo, que está na versão de 2021 lançada pela Editora 34. E nelas se observou a mudança na grafia de alguns nomes, em especial a Karenina que virou Kariênina. Os tradutores defendem que esta forma está mais próxima da pronúncia nativa.

A tradução do alfabeto cirílico para o alfabeto ocidental sempre produziu grafias diferentes até mesmo no mesmo idioma, ao gosto do tradutor. Por isso é comum no Brasil, conforme a fonte, se ler czar/tsar, Chernobyl/Tchernóbil, Gorbachev/Gorbatchov, entre outras variáveis com acréscimos de letras e acentos que formam uma enorme lista. Os ajustes foram feitos à medida que a fonte para a tradução do russo para o português deixou de ser versões em francês, como em boa parte do século 20, e inglês. Ficou estabelecido no mercado literário como padrão de excelência e fidelidade a tradução buscada na fonte original. No próprio Tolstói, o acento ou não no sobrenome é detalhe em relação a como seu nome aparece nas edições brasileiras: Liev, para Figueiredo, Lev, para Perpétuo, ou Leon na opção de outros tradutores. Nas versões em inglês, ele vira Tolstoy.

 

Dicas do Ling

Tempos atrás, bastava ir às boas locadoras de vídeo e garimpar. As opções para assistir às adaptações de Anna Kariênina para o cinema agora são mais restritas. Na Netflix está disponível o filme de 2012 estrelado por Keira Knightley. As versões com Greta Garbo, Vivien Leigh e Sophie Marceau podem ser encontradas em DVD em sites de compras.

O escritor russo Vladimir Nabokov faz uma aprofundada análise de Anna Kariênina em Lições de Literatura Russa. Fora de catálogo, o livro pode ser encontrado em sebos.

Veja um trecho da adaptação de Anna Kariênina pelo Balé de Hamburgo.

Qual a melhor edição brasileira de Anna Kariênina? Em seu canal dedicado à literatura, Paloma Lima analisa cinco das diferentes edições do romance lançadas no país em aspectos como tradução, informações de rodapé, conteúdos extras de apoio ao leitor, capa e diagramação.

Irineu Franco Perpétuo, autor da mais recente tradução de Anna Kariênina para o mercado brasileiro (Editora 34), conversa com a escritora Luana Chnaiderman sobre o seu trabalho de adaptação, o universo que o romance abarca, sua importância histórica e o impacto que provocou à época de seu lançamento com sua publicação seriada.

O tradutor Oleg Almeida, responsável por uma das versões do livro no Brasil a partir do original russo (Anna Karênina: Romance em Oito Partes, editora Martin Claret), comenta o trabalho de adaptação direto da fonte primária e a chamada tradução indireta, a partir do idioma francês, como era mais comum ao longo do século 20.

Novelas e seriados que conquistaram a audiência na televisão a partir de meados do século 20 bebem na arquitetura dramatúrgica de obras como Anna Kariênina, publicado primeiro em capítulos. Este é um dos temas abordados por Isabella Lubrano em sua resenha no canal de literatura Ler Antes de Morrer.

 

Referências

BERNARDINI, AURORA  FORNONI. Considerações à margem de Anna Kariênina

Disponível em https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13724/15542

REVISTA PHILOS.O grande baile de Tolstói: uma entrevista com Irineu Franco Perpétuo

Disponível em https://revistaphilos.com/2020/04/21/o-grande-baile-de-tolstoi-uma-entrevista-com-irineu-franco-perpetuo/

SILVA, TATIELE NOVAIS. As representações de Anna Kariênina no romance e no cinema: a construção dialógica de sujeitos em diferentes gêneros

Disponível em https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/150928/silva_tn_me_arafcl_par_sub.pdf?sequence=11&isAllowed=y