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“Clube da Luta”, um clássico da cultura pop que faz pensar com os punhos

Em sua última edição de 2022, o projeto Adaptação – Entre a Literatura e o Cinema tem como tema Clube da Luta, marco da cultura pop contemporânea, publicado em 1996 pelo escritor Chuck Palahniuk e adaptado para o cinema no filme de 1999, dirigido por David Fincher.

No encontro marcado para o dia 6 de dezembro, no Instituto Ling, às 19h30, o professor de literatura e escritor Pedro Gonzaga e o jornalista e crítico de cinema Roger Lerina discutirão as particularidades e as convergências destas duas obras de culto que marcaram uma geração. Garanta seu ingresso.

 

Jornalista por formação, o americano com ascendência ucraniana Chuck Palahniuk ganhou casca grossa com os baques e reviravoltas que encarou na vida até virar escritor de sucesso. Viveu parte da infância e juventude morando em um trailer. O avô paterno matou sua avó e cometeu suicídio. A mãe morreu de câncer. O pai foi assassinado junto com a namorada pelo ex-companheiro dela. Após um tempo atuando em rádio e jornal, Palahniuk largou tudo para trabalhar como mecânico de caminhões. No tempo livre, gostava de medir forças em lutas amadoras e prestava serviço voluntário em abrigos e hospícios.

Clube da Luta traz impresso esse caos existencial habitado por personagens à deriva, uma das marcas autorais que fazem a fama de Palahniuk e atraem polêmica para sua obra. É dono de uma prosa minimalista, seca e direta, erguida sobre um universo ficcional que combina sátira, horror, sexo, violência e desencanto.

O romance tem origem em um conto que Palahniuk fez para uma oficina de escrita criativa, no qual descrevia uma situação que de fato havia vivido. Após uma briga em que ficou com o rosto bastante machucado, encarou por semanas os olhares curiosos e consternados dos colegas de trabalho. Editores a quem apresentou o conto gostaram e pediram que ampliasse a história. Resultou em Clube da Luta, seu livro de estreia. A crítica destacou a força da narrativa corajosa e incômoda que, entre o humor sarcástico e a pancadaria, apresentava em seu epicentro uma ácida crítica à sociedade regida por grandes corporações e pelo consumismo.

 

Clube dos corações solitários

Palahniuk acompanha a jornada de um personagem conhecido como narrador. A ausência de um nome reforça a intenção do autor de fazer dele um tipo comum e universal. Este sujeito odeia o emprego – faz laudos para justificar ou não operações de recall de automóveis com problemas de fábrica –, sofre de insônia crônica e espanta o tédio comprando de maneira compulsiva móveis e roupas de grife.

Em busca de algum sentido para sua vida ordinária e solitária, ele começa a frequentar diferentes grupos de apoio: viciados em álcool, sexo e comida, doentes terminais, vítimas de incesto, afligidos por fobias diversas, entre outros. Vivencia experiências catárticas compartilhando sofrimentos que desconhece. E, num desses encontros, descobre que não é o único a fazer isso. É o passatempo também da ciclotímica Marla Singer.

 

Gladiadores urbanos

Em uma de suas viagens a trabalho, o narrador conhece Tyler Durden, vendedor de sabonetes que faz bicos de garçom e projecionista de cinema. Durden, ao contrário do novo amigo, transborda energia e testosterona. Defende que a vida é curta e precisa ser encarada sem freios sociais e morais. Tem como objetivo combater “o sistema” que explora os pobres para enriquecer os poderosos donos do capital.

Durden promove rinhas humanas em que outros homens sem rumo e apáticos como o narrador, ricos e pobres, executivos e operários, extravasam suas frustrações cotidianas em sangrentas batalhas corpo a corpo com os punhos. Rostos desfigurados, ossos quebrados e bocas sem dentes, ao final, simbolizam um conforto espiritual que faz todos retornarem aliviados para suas vidinhas sem graça.

O terceiro ato da narrativa mostra a transformação deste grupo de gladiadores urbanos em uma milícia anarcoterrorista, encarregada de destruir as estruturas do capitalismo. Nesse viés, digamos, sociológico, Palahniuk investe na ação radical como solução para transformar uma sociedade corroída por consumo excessivo de bens materiais e supérfluos, egocentrismo, ganância e indiferença. As ações de guerrilha envolvem vandalismo nas ruas e explosões de prédios.

 

No caminho de Hollywood

Em 1999, chegou aos cinemas a adaptação assinada por David Fincher e estrelada por Edward Norton (narrador), Brad Pitt (Tyler Durden) e Helena Bonham Carter (Marla Singer). A trama tem algumas diferenças pontuais em relação ao livro, como situações que ocorrem em cenários distintos, supressão de cenas e menor destaque a alguns personagens. É do jogo nessas adaptações. O que chamou mais a atenção dos leitores, contudo, foi a mudança no surpreendente desfecho, moldado no filme para se valer do impacto cinematográfico na tela grande, ao som da canção Where Is My Mind?, da banda Pixies.

David Fincher não foi a primeira opção dos executivos do estúdio Fox quando os direitos do livro foram adquiridos. Assumiu o trabalho depois que Peter Jackson, Bryan Singer e Danny Boyle, respectivamente, recusaram o convite por estarem envolvidos com outros projetos. Fincher vinha, naquele momento, construindo uma elogiada trajetória no cinema após ficar conhecido pelos sofisticados videoclipes que realizou para artistas, como Madonna, Michael Jackson, Sting, Aerosmith e George Michael.

Já havia mostrado um bom serviço à frente da sequência de uma popular franquia, Alien 3 (1992). Seu segundo filme foi o aclamado Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), com Brad Pitt também em ascensão. Antes de Clube da Luta, apresentou Vidas em Jogo (1997). O apuro visual do seu trabalho e versatilidade mostrada nesses três longas de gêneros distintos – ficção científica, thriller policial e suspense psicológico – foram credenciais robustas para adaptar o badalado livro de Palahniuk.

Fincher, porém, não teve vida fácil no set. Os produtores temiam que uma classificação etária muito rigorosa prejudicasse as bilheterias. O diretor fez pequenas concessões, junto com o roteirista Jim Uhls, e conseguiu impor seu ponto de vista – a classificação ficaria nos 18 anos. Com as filmagens iniciadas, um dos financiadores ameaçou pular fora quando o orçamento saltou de US$ 50 milhões para US$ 67 milhões – e sem ele o filme teria como destino provável a gaveta. Fincher bateu o pé, e o produtor foi convencido a seguir no time quando começou a ver o material bruto que chegava do laboratório.

 

Sucesso em DVD

Outro embate entre o diretor e os executivos da Fox teve início na campanha de marketing. O estúdio queria uma promoção voltada para as lutas e destaque em Brad Pitt. O diretor defendia que o filme não era sobre homens brigando, mas sim uma crítica social, e Pitt não era o único protagonista. Para seu desgosto, Clube da Luta ganhou anúncios na programação televisiva de luta-livre e MMA.

O desempenho nas bilheterias foi apenas razoável para um grande estúdio. Faturou US$ 101 milhões em todo o mundo. Clube da Luta, porém, teve a sorte de entrar em cena bem no momento em que uma revolução no consumo doméstico de filmes se consolidava no sucesso do DVD. Com uma edição caprichada supervisionada pelo próprio Fincher, o filme se tornou um fenômeno de vendas e locações e aumentou sua margem de lucro para um patamar mais satisfatório.

Ironicamente, essa crítica à sociedade de consumo se consolidou em objeto de culto consumido em escala global. Engordou os cofres de uma grande corporação de Hollywood e fez de Palahniuk um escritor famoso e rico. Clube da Luta reforçou os pilares do capitalismo que, na ficção, buscava destruir.

 

Crítica dividida

Na longa entrevista do crítico Richard Schinkel com seu amigo Martin Scorsese, publicada no livro Conversas com Scorsese (2010), eles falam sobre os “anos impressionáveis”, faixa etária por volta dos 13, 14 anos na qual os cinéfilos são marcados por filmes que passam a acompanhá-los por toda a vida. Scorsese lembra que o ator Leonardo DiCaprio, seu parceiro recorrente, dizia que Clube da Luta representava este tipo de filme para a sua geração – embora tivesse 24 anos quando o longa-metragem estreou nos cinemas. Scorsese destaca: “Algumas pessoas dizem que Clube da Luta é a Laranja Mecânica da sua geração. Pense o que pensar do filme, não está aqui nem ali. É o jeito como ele afetou muita gente jovem com menos de trinta anos hoje”.

O componente geracional ajuda a explicar a recepção dividida da crítica que Clube da Luta encontrou em seu lançamento. Roger Ebert, um dos mais respeitados críticos de cinema dos Estados Unidos em todos os tempos, escreveu no Chicago Sun-Times: Clube da Luta é o filme mais franca e alegremente fascista desde Desejo de Matar, uma celebração da violência na qual os heróis se permitem beber, fumar, sacanear e bater uns nos outros. Às vezes, para variar, eles espancam a si mesmos. É pornografia machista – o filme sexual para o qual Hollywood vem se dirigindo há anos, no qual o erotismo entre os sexos é substituído por brigas entre homens”.

Foto: Filme Clube da Luta (1999). Crédito: Divulgação.

Por sua vez, a crítica Janet Maslin classificou Clube da Luta como “visionário e perturbador” em sua elogiosa resenha no The New York Times: “A ficção científica sardônica alimentada por testosterona toca um nervo cru. (...) As ideias iradas e difusamente espirituosas de Fincher sobre a masculinidade contemporânea se desdobram. (...), ele constrói uma enorme estrutura fantasmagórica em torno da busca da autoridade masculina perdida, e tenta psicanalisar uma sociedade inteira no processo. Finalizado com um golpe narrativo ainda maior do que aquele que encerra O Sexto Sentido, este filme gira de maneiras que só se somam completamente na saída do cinema, e podem requerer outra sessão. Fincher usa seu enorme arsenal de truques para enterrar pequenas pistas sobre do que esta história realmente trata”.

 

Trechos do livro Clube da Luta

Depois de uma noite no clube da luta, o mundo real não é mais o mesmo. Nada vai deixá-lo puto. Sua palavra é lei, e mesmo que alguém vá contra a lei ou provoque você, nem isso o deixa puto. Na vida real, sou coordenador de campanhas de recall de camisa e gravata, sentado no escuro com sangue na boca, trocando transparências e slides enquanto meu patrão diz à Microsoft por que escolheu especialmente aquele tom de azul centáurea para o ícone.

O primeiro clube da luta éramos apenas Tyler e eu, batendo um no outro. Antes, se eu chegasse em casa nervoso, vendo que a vida não estava de acordo com meus planos, bastava limpar o apartamento ou lustrar o carro. Um dia eu morreria sem nenhuma cicatriz e deixaria um apartamento e um carro muito bons. Muito bons mesmo, até juntar poeira ou mudar de dono. (...) Desde que o clube da luta começou, tenho metade dos dentes moles na boca (...)
O clube da luta acontece nas madrugadas de sábado para domingo, no porão de um bar, quando as portas se fecham; a cada semana tem mais gente. Tyler fica embaixo da única lâmpada no meio do porão escuro e vê a luz refletida em centenas de olhos. A primeira coisa que Tyler grita é: – A primeira regra do clube da luta é não falar do clube da luta. – A segunda regra do clube da luta é não falar do clube da luta.

Eu vivi com meu pai uns seis anos, mas não me lembro de nada. A cada seis anos meu pai formava uma nova família em outra cidade. Não se tratava tanto de formar uma família como de abrir outra franquia. O que se vê no clube da luta é uma geração de homens criados por mulheres. Tyler fica sob a única lâmpada em plena madrugada, no porão repleto de homens, e passa as outras regras: dois homens por luta, uma luta por vez, sem camisa e sem sapatos, a luta só termina quando os dois quiserem (...)

Você não se sente tão vivo em nenhum outro lugar como no clube da luta. Quando estão só você e o outro cara embaixo da lâmpada e toda aquela gente assistindo. Clube da luta não tem nada que ver com ganhar ou perder lutas. Clube da luta não tem nada que ver com palavras. (...) No clube da luta você ouve barulhos e grunhidos como em qualquer academia, mas ninguém está preocupado em ficar bonito. Há gritos histéricos e línguas estranhas como nas igrejas, mas quando você acorda no domingo à tarde se sente salvo. Depois da minha última luta, o cara que lutou comigo limpou o chão enquanto eu ligava para o seguro para aprovar minha entrada no pronto-socorro

 

DICAS DO LING

O filme Clube da Luta está disponível nas plataformas Netflix, Amazon Prime Video, HBO Max, Telecine/Globoplay, Mubi e Star+.

O escritor Chuck Palahniuk, o roteirista Jim Uhls e o diretor David Fincher falam sobre o processo de criação do livro e do filme. Assista ao vídeo com legendas em português

Aspectos psicanalíticos de Clube da Luta são discutidos pelo psicólogo Ricardo Chagas. Veja.

 

REFERÊNCIAS

FOLHA DE S. PAULO. Chuck Palahniuk: "Meus personagens querem se divertir"

Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0312200506.htm

GALILEU. 10 curiosidades sobre Chuck Palahniuk, autor de “Clube da Luta”

Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/02/10-curiosidades-sobre-chuck-palahniuk-autor-de-clube-da-luta.html

O GLOBO. Autor de “Clube da Luta”, Chuck Palahniuk critica mudança de final do filme na China

Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/autor-de-clube-da-luta-chuck-palahniuk-critica-mudanca-de-final-do-filme-na-china-25369465

ROLLING STONE. Quais são as 7 principais diferenças entre o filme e o livro Clube da Luta?

Disponível em https://rollingstone.uol.com.br/noticia/quais-sao-7-principais-diferencas-entre-o-filme-e-o-livro-clube-da-luta/

VIEIRA, DIMITRI. Chuck Palahniuk: 7 dicas e técnicas de escrita e storytelling para você aprender com o autor do Clube da Luta

Disponível em https://rockcontent.com/br/talent-blog/chuck-palahniuk-dicas-de-escrita/