Foto: Divulgação Foto: Divulgação

As desilusões do “sonho americano” vividas em Foi Apenas um Sonho (2008)

As adaptações cinematográficas de obras literárias têm o poder de popularizar autores e obras que, apesar de excelentes, às vezes caem no esquecimento dos leitores mais antigos e das novas gerações. No Brasil, a obra Revolutionary Road (1961) só chegou às prateleiras das livrarias em 2009, após o lançamento em 2008 da adaptação para o cinema dirigida por Sam Mendes, com o nome de Foi Apenas um Sonho, sendo o primeiro livro de Richard Yates traduzido no país. 

 

A OBRA

 

“Pela segunda vez naquele dia ele constatou que o ato do amor era capaz de deixá-lo sem fala, e tinha esperanças de que ela deixasse a conversa para o dia seguinte. Sabia que o que ela dissesse seria pronunciado com aquela ênfase estranha, teatral, e não se sentia apto a lidar com aquilo agora. Tudo o que desejava era ficar deitado e sorrindo no escuro, confuso, culpado e feliz, e se render ao peso crescente do sono.

 

— Querido? — a voz dela soou bem ao longe. — Querido? Você não vai dormir, vai? Porque eu tenho tanto pra falar e estamos desperdiçando o brandy e ainda não tive a chance de te contar sobre o meu plano.

 

No minuto seguinte, ele percebeu que era fácil ficar acordado, ainda que apenas pelo prazer de sentar ao lado dela embaixo das cobertas, beber brandy à luz da lua e ouvir a modulação de sua voz. Teatral ou não, sua voz, quando falava de amor, tinha sempre um belo som. Afinal, com alguma relutância, ele começou a prestar atenção ao que ela dizia.

 

O plano, nascido da tristeza e da saudade e do amor dela por ele, era um programa detalhado para se transferirem para a Europa “permanentemente”, no outono. Ele se dava conta de quanto dinheiro dispunham? Com as economias, o lucro obtido com a venda da casa e do carro e com o que pudessem poupar entre agora e setembro, teriam o suficiente para viver com conforto durante seis meses.”

 

(Trecho da obra Revolutionary Road, de Richard Yates, n.p.)

 

Revolutionary Road é o romance de estreia do escritor Richard Yates e seu livro de maior repercussão. Lançado em 1961, é uma obra que trata das desilusões do “sonho americano”, em que o desejo por estabilidade e uma vida tranquila em uma casa de subúrbio com o gramado verdejante e um cercadinho branco, nada mais é que o abandono dos sonhos individuais para encaixar-se ao ideal de vida construído e vendido aos jovens casais dos anos 50. A história acompanha a vida do casal April e Frank Wheeler, interpretados no cinema por Kate Winslet e Leonardo DiCaprio, que moram no subúrbio de Connecticut, ironicamente em Revolutionary Road, uma rua que nada tem de revolucionária. Ambos são vistos pela vizinhança como pessoas diferentes daquele universo, como se fossem superiores ao restante, percepção que também é nutrida pelo casal.

April e Frank se conhecem em uma festa, ainda jovens e cheios de planos e sonhos. Ela era atriz graduada em umas das melhores escolas de atuação de Nova York e, ele, um rapaz que sonhava em viajar pelo mundo e desdenhava os homens engravatados que passavam a vida presos num escritório executando sempre a mesma função. Algum tempo depois, os dois se casam e acabam tendo filhos não planejados, fazendo com que ambos adiem seus desejos para lidar com as necessidades da vida conjugal. April deixa a carreira de atriz para cuidar da casa e dos filhos, enquanto Frank rende-se ao mesmo destino de seu pai e passa a trabalhar na mesma empresa que ele.

A história começa em 1955, com April atuando em uma peça junto ao grupo de teatro local e ficando extremamente frustrada com sua performance em palco. O descontentamento acaba sendo o ponto de partida para que o casal entre em uma intensa discussão que desencadeia uma série de reflexões e sensações sobre o porquê de eles estarem vivendo daquela forma. Ela se percebe completamente distante dos seus sonhos, sendo reduzida apenas ao papel de mãe e dona de casa. Ele, mais conformado e estagnado, considera que leva uma vida confortável apesar do constante tédio e desdém com seu trabalho e todos que o cercam.

 

Foto: Cena do filme "Foi Apenas um Sonho" (2008). Frank Wheeler (Leonardo DiCaprio) e April (Kate Winslet)

 

Frank, prestes a completar 30 anos, passa a sentir-se desestimulado, atravessando um momento de crise em seu casamento e vivendo casos extraconjugais durante o horário que deveria estar trabalhando. Já April não tem a mesma chance de fuga da realidade, pois passa o dia em casa cuidando dos filhos e almejando uma vida mais estimulante. Movida pela discussão com Frank, ela passa a analisar o que lhe fazia gostar do marido, e desenvolve um plano um tanto quanto irreal para mudarem completamente de vida, abandonando o subúrbio para viver em Paris, onde ela trabalharia como secretária e seria a provedora da família, enquanto Frank cuidaria dos filhos e teria tempo para descobrir sua real vocação. Ela apresenta o plano ao marido que, apesar de achar um tanto absurdo, se motiva e a relação volta a ser apaixonante durante o período que seguem os planos para viagem. April alimenta uma ideia extremamente romântica de recomeço. Muito inspirada nos filmes Hollywoodianos e nas peças de teatro, ela busca uma saída extraordinária para fugir dos problemas e da insatisfação com a rotina.

Os planos, no entanto, caem por terra quando April anuncia estar grávida novamente e expõe para Frank sua vontade de realizar um aborto e seguir com o planejado, o que ele encara como um absurdo sendo extremamente impositivo em relação às vontades da esposa e coloca em dúvida o seu amor pelos filhos. Foi Apenas um Sonho, segundo o próprio escritor,  é uma obra de diferentes tipos de abortos - não só o aborto de um feto, mas de ideias, planos e sonhos.

Entre os principais elementos do filme, podemos destacar sua trilha sonora incidental, criada por Thomas Newman (também responsável pela trilha de Beleza Americana), além do figurino impecável e o excelente elenco de coadjuvantes, composto por atores de peso como Michael Shannon (indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) e David Harbour.

 

O AUTOR

O escritor Richard Yates nasceu em 3 de fevereiro de 1926, na cidade de Nova York. Quando tinha três anos seus pais se separaram e ele e sua irmã foram criados pela mãe, crescendo em meio ao contexto de crise financeira da Grande Depressão de 1929, mudando-se diversas vezes de casa e de cidade. Estudou em Nova York, no The Avalon School, onde concluiu os estudos em 1944 e alistou-se no exército norte americano, sendo enviado de navio para a França, vivendo de perto os horrores da guerra. Retornou aos Estados Unidos após o fim da Ocupação da Alemanha e se manteve financeiramente com o recebimento de uma pensão paga pelo exército devido ter contraído tuberculose em sua época como combatente. Yates a utilizou para mudar-se para Europa, onde residiu por um longo período.

No final dos anos 50, Richard volta para os Estados Unidos e executa diversas funções relacionadas à escrita. Trabalha como professor e ghostwriting para The New School, além de escrever para agência de notícias The United Press e para a empresa de materiais de escritório Remington Rand. Nessa época, Yates atravessava seu divórcio e lidava com a perda da custódia das filhas em função dos excessos com álcool e tabaco e que agravaram seus problemas de saúde causados pelas sequelas da tuberculose. As coisas melhoram quando o escritor publica seu primeiro romance, Revolutionary Road, em 1961, recebendo uma boa recepção da crítica e sendo nomeado ao National Book Award de 1962. A obra semi-autobiográfica foi inspirada no casamento do autor.

Na época, Yates já havia publicado alguns de seus contos e tinha um certo reconhecimento como contista, mas o sucesso inicial de Revolutionary Road não se repetiu com seus demais livros e o escritor dedicou-se a carreira acadêmica, entre outros trabalhos, enquanto escrevia alguns outros romances e contos. Apesar do pouco reconhecimento recebido em vida, Richard Yates é considerado um grande escritor e tem sido redescoberto pelas novas gerações de leitores graças ao sucesso da adaptação de Revolutionary Road para o cinema.

Falecido em 1992, ele também é autor das coletâneas de contos Eleven Kinds of Loneliness (1962) e Liars in Love (1981) e dos romances A Good School (1978), The Easter Parade (1976) e Disturbing the Peace (1975).

 

CURIOSIDADES

Você sabia que no Brasil a obra Revolutionary Road foi adaptada para o teatro? A adaptação ganhou os palcos em 2019, interpretada por Andréia Horta e Fabrício Pietro.

Foi Apenas um Sonho marcou o reencontro de Kate e DiCaprio nos cinemas! A dupla fez grande sucesso em 1997, quando estrearam o filme Titanic, e desde então são grandes amigos. A atriz já estava escalada para o filme e apresentou o roteiro para Sam Mendes, na época seu marido, e sugeriu o nome de Mendes para tocar a direção do projeto.

Quando lançado em 1961, Revolutionary Road logo chamou atenção da indústria cinematográfica, tendo seus direitos autorais comprados em 1967, mas apesar de cobiçado o filme só foi produzido na década de 2000, após a morte do autor e do comprador dos direitos da obra. O texto já havia sido adaptado para o cinema, mas não chegou a ser produzido porque não agradou a Richard Yates.

Foi Apenas um Sonho (2008) recebeu três indicações ao Oscar – Melhor Ator Coadjuvante para Michael Shannon, Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino. No Globo de Ouro, Kate Winslet venceu o prêmio de Melhor Atriz.

 

DICAS DO LING

Outro grande sucesso do diretor Sam Mendes é o longa Beleza Americana, vencedor de 4 estatuetas do Oscar em 2000, nas categorias Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Diretor, Melhor Fotografia e Melhor Roteiro Original. Você pode assistir nas plataformas Prime Video, Telecine, Google Play.

Foi Apenas um Sonho está disponível para locação no YouTubeGoogle Play Filmes.

Confira o capítulo do podcast Quase Lá, dedicado ao filme Foi Apenas um Sonho, trazendo diversas curiosidades sobre a produção e recepção do longa!  Disponível no Spotify

 

REFERÊNCIAS

BALLARINE, Ricardo. A desilusão de um modo de vida. Artigo escrito para o Jornal O Tempo. 2009. Disponível em: https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/a-desilusao-de-um-modo-de-vida-1.279166

COHEN, Gustavo. Richard Yates: o cronista da Idade da Ansiedade Revisitado. Estação Literária, Londrina, Vagão-volume 8 parte B, p. 83-91, dez. 2011, ISSN 1983-1048.Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/estacaoliteraria/article/view/25706

RODRIGUES, Rafael. Foi Apenas Um Sonho, de Richard Yates. Coluna do Digestivo Cultural, 2009. Disponível em: https://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2777&titulo=Foi_apenas_um_sonho,_de_Richard_Yates

YATES, Richard. Foi apenas um sonho [recurso eletrônico] : (Rua da Revolução) / Richard Yates ; tradução José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. Disponível em: https://docero.com.br/doc/xex55