Cena do filme De Olhos Bem Fechados Cena do filme De Olhos Bem Fechados

As raízes sombrias do desejo em De Olhos Bem Fechados

 

“Eu já o tinha visto pela manhã”, respondeu Albertine, “subindo apressado as escadas do hotel com sua valise amarela. Ele me examinara de passagem, mas somente se deteve alguns degraus adiante, voltando-se para mim: nossos olhares tinham de se encontrar. Não sorriu; antes, pareceu-me que seu semblante ensombreceu-se, e o mesmo deve ter acontecido comigo, que me senti tocada como nunca. Na praia, passei o dia inteiro perdida em devaneios. Se ele me chamasse — julguei então —, não teria podido resistir. Acreditava-me capaz de tudo, pronta a abrir mão de você, da criança, de meu futuro; acreditava estar já decidida e, ao mesmo tempo — será que poderá me entender? —, você me era mais caro do que nunca.” 

(trecho da página 8, disponível para leitura no site da Companhia das Letras)

 

Seja na Nova York dos anos 1990 ou na Viena do início do século XIX, a história de um casal perturbado pelo desejo por outras pessoas ainda causa certo alvoroço —  e um tanto de transgressão — ao falar tão abertamente sobre a sexualidade humana. A novela Breve Romance de Sonho saiu das páginas de Arthur Schnitzler para ganhar as telas no controverso e premiado De Olhos Bem Fechados, dirigido por Stanley Kubrick.

 

A OBRA

Assim como seu contemporâneo Sigmund Freud, Arthur Schnitzler abalou a sociedade vienense ao explorar as raízes sombrias do desejo humano. Numa atmosfera onírica, cheia de fantasias sexuais, que se mescla com a realidade agonizante — de uma cidade cheia de cafés, vilas, prostíbulos decadentes, hospitais e até necrotério; Schnitzler nos mostra a violência e a depravação que a sociedade burguesa civilizada insiste em varrer para debaixo do tapete.

Essa novela erótica sobre a infidelidade ganha contornos mais modernos na adaptação de Kubrick. A decadência de Viena é substituída pela cosmopolita Nova York. Fridolin e Albertine se tornam Bill e Alice. E o (ex) casal Nicole Kidman e Tom Cruise dá vida a esta história em que realidade e sonho parecem misturar-se. 

 

Cena do filme De Olhos Bem Fechados (1999)

 

A confissão do desejo da esposa leva Fridolin/Bill, após um chamado de trabalho para atender um paciente no meio da noite, a vagar pelas ruas em busca de sensações que desviem de seu pensamento a imagem criada da traição de Albertine/Alice. O personagem se coloca em uma série de situações peculiares na tentativa de atender a seus desejos de forma inconsequente, mas sua presença nos espaços acaba sendo sempre de um espectador deslocado que não consegue entregar-se às experiências e afeta a vida de desconhecidos que buscam protegê-lo de suas próprias atitudes.

É a quase-confissão de Albertine/Alice que faz a história se mover. Quando Albertine compreende que os homens não sabem muita coisa sobre o casamento. Quando Alice fica ofendida pela certeza do marido em saber como as mulheres se sentem. Afinal, para ele, a natureza das mulheres faz com que elas jamais traiam, que não sintam desejo. Alice, de maneira mais incisiva que Albertine, diz “Ah, se vocês homens soubessem…” e dialoga não só com Bill, mas também com Freud, Schnitzler e talvez até com Lacan — mostrando a eles sua ignorância ao acreditar que conhecem como as mulheres pensam. Mesmo que ela pareça chocada com a própria revelação ao contar para Bill sobre seu desejo por outro homem.

Enquanto Breve Romance de Sonho é totalmente onírico, De Olhos Bem Fechados encara a realidade. Segundo Michael Wood — historiador, crítico e professor emérito da Universidade de Princeton —, não vemos o que é mais real no filme, a memória e o sonho que Alice conta a Bill; no entanto, o que parece mais irreal é o que, de fato, acontece diante de nossos olhos. O que Bill vê com os olhos bem abertos é mais fantasioso do que o que Alice vê de olhos bem fechados. Enquanto Alice confessa abertamente seu desejo, Bill está mergulhado na sua confusão sexual. O sonho de Alice é mais excitante e assustador que a orgia de Bill. Percebemos, então, que Alice tem desejos reais e está consciente deles, enquanto Bill não sabe muito bem o que sente, a não ser a certeza de que ele, como homem, tem direito a estes desejos.

 

O AUTOR

Arthur Schnitzler foi um médico e escritor austríaco nascido na Viena de 1862. Viveu em meio às mudanças culturais e políticas da virada do século XIX para o XX e o surgimento da psicanálise na Áustria. De família burguesa e filho de um renomado médico, ele foi pressionado pelo pai a seguir a mesma profissão e formou-se em Medicina na Universidade de Viena, em 1885. No período em que atuou como médico, ele aproximou-se do estudo da psiquiatria, que acabou sendo fonte de inspiração para sua escrita. A partir de 1894, deixa a carreira como médico para trabalhar exclusivamente com a literatura.  Sua obra como dramaturgo e romancista é dedicada a tratar sobre os dramas psicológicos vividos pela burguesia e aristocracia vienense.

 

“Seus romances estão cheios de pais tirânicos, mulheres frígidas, jovens histéricas, maridos impotentes, meninos fascinados por mães dominadoras, meninas fascinadas por pais sedutores, controles sociais disfarçados, sexualidades reprimidas. O autor vienense meteu o universo burguês e aristocrático de Viena num gigantesco divã.”

(trecho do ensaio Os tempos de Schnitzler, escrito por Sergio Vilas-Boas no jornal de literatura Rascunho)

 

Schnitzler tem seu trabalho como escritor reconhecido com a publicação das peças de teatro Anatol (1893) e Ronda (1897), que falam sobre o erotismo e a melancolia de Viena no final do século XIX e escandalizaram a sociedade em suas primeiras encenações nos palcos. Escreveu também sobre o antissemitismo vivido em sua época nas obras O Caminho Solitário (1908) e Professor Bernhardt (1912). Autor de mais de 20 livros, muitas de suas histórias já foram adaptadas para o cinema como O Retorno de Casanova (1918), A Ronda (1920), Fräulein Else (1924) e Breve Romance de Sonho (1926).

 

CURIOSIDADES

O escritor Arthur Schnitzler trocou cartas com o famoso psicanalista Sigmund Freud sobre os temas abordados em sua criação literária. Os dois tinham bastante em comum: vienenses, idades próximas, origem judaica, médicos de formação e ex-alunos de Theodor Meynert. Estas cartas foram traduzidas e publicadas na ArteFilosofia (Revista do Programa de Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte da UFOP). 

Você sabia que De Olhos Bem Fechados foi o último longa realizado pelo cineasta Stanley Kubrick? Ele faleceu em 1999, alguns meses antes do lançamento do filme.

O filme foi gravado na Inglaterra utilizando um estúdio para recriar as ruas de Nova York, cidade onde a adaptação se passa. De Olhos Bem Fechados foi considerado uma das produções mais longas de sua época, pois levou três anos para ser concluída.

Você sabia que o ilustrador Jakob Hinrichs fez uma adaptação em graphic novel do livro? Tem o mesmo nome do título original, Traumnovelle, e você pode ver mais no site do artista.

Traumnovelle (Breve Romance de Sonho) já havia sido adaptado para o audiovisual em 1969, em um filme para a televisão, dirigido por Wolfgang Glück. Disponível no MUBI.

 

DICAS DO LING

O filme de Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick, está disponível para locação online nos sites: Looke, Vivo Play, YouTube e Google Play.

Ficou com vontade de ler o livro? Compre no site da Companhia das Letras.

Você pode ouvir a trilha do filme no Spotify.

 

Referências

WOOD, Michael. Quite a Night! London Review Of Books. 1999. Disponível em: https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n19/michael-wood/quite-a-night

FERREIRA, Luís. De Olhos Bem Fechados – 20 anos de mistérios. Site Cinema Sétima Arte. 2020. Disponível em: https://www.cinema7arte.com/de-olhos-bem-fechados-20-anos-de-misterios/