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Entre ciência e religião: O Nome da Rosa, de Umberto Eco

Ambientado num mosteiro franciscano italiano no ano de 1327, o livro de mistério histórico escrito por Umberto Eco foi publicado pela primeira vez em 1980. O frei Guilherme de Baskerville é enviado para investigar os monges que estão sendo acusados de heresia, mas sua missão é interrompida por assassinatos que lembram cenas apocalípticas. Mais que uma história de investigação criminal, O Nome da Rosa combina semiótica, análise bíblica, teoria literária e é, ainda, uma preciosa crônica sobre a Idade Média.

 

Cena do filme O Nome da Rosa

 

A OBRA

O improvável best-seller O Nome da Rosa foi publicado em 1980 e logo atingiu a marca de 500 mil exemplares vendidos, sendo em seguida traduzido para o alemão e o francês. Improvável porque o livro tem mais de 500 páginas e por ter sido a estreia de Eco na ficção – o autor já era conhecido por seu significativo trabalho acadêmico na área de semiótica, além da sua contribuição costumeira à imprensa italiana. A versão cinematográfica de Jean-Jacques Annaud é de 1986 e traz o ator escocês Sean Connery no papel principal.

 

“Meus amigos e editores sugeriram que abreviasse as primeiras cem páginas, pois acharam muito difícil e exigente. Sem pensar duas vezes, recusei, porque, como eu insistia, se alguém quisesse entrar na abadia e morar lá por sete dias, ele teria que aceitar o ritmo próprio da abadia. Se não pudesse, nunca conseguiria ler o livro inteiro. Portanto, aquelas primeiras cem páginas são como uma penitência ou iniciação, e se alguém não gosta delas, pior para ele. Ele pode ficar ao pé da montanha.”

Eco em Post-Script to The Name of the Rose, 1984, pp. 520

 

 

Uma série de assassinatos acontece dias antes de uma importante reunião entre diferentes ordens religiosas católicas, que precisam discutir questões políticas da instituição e decidir o futuro dos franciscanos – eles estão sendo acusados de cometer heresia por defenderem a abnegação material para os religiosos e para a própria Igreja.

O livro é narrado em primeira pessoa por Adso de Melk – assistente do frade –, que, apesar de ter 80 anos quando relata a história, nos conta o que viu quando tinha apenas 18. Os assassinatos transformam o frei Guilherme (ou William) de Baskerville – referência explícita a O Cão dos Baskervilles, um dos livros mais famosos de Sir Arthur Conan Doyle – e Adso em Sherlock Holmes e Watson da era medieval. O frade franciscano se vê, então, numa dupla investigação: tanto a dos crimes quanto a da estrutura eclesiástica, que põe em cheque seus métodos e até seus dogmas mais profundos.

 

Cena do filme O Nome da Rosa (1986). Da esq. pra dir.: Frei Guilherme (Sean Connery) e Adso de Melk (Christian Slater)

 

O filme, lançado apenas seis anos após o lançamento do livro, não recebeu o apoio da crítica à época. Mesmo contando com elenco de peso e sendo protagonizado por Sean Connery, os resenhistas não perdoaram a simplificação do roteiro, que, em vez de abordar a densidade histórico-filosófica do romance, preferiu focar exclusivamente nos aspectos detetivesco e romântico da leitura, tornando a história mais superficial. A imprensa italiana chegou a publicar resenhas com títulos como “Grande livro, insignificante filme” e "Um delito essa Rosa!”.

O autor não se pronunciou sobre a adaptação, mas declarou ter dado total liberdade ao diretor para que ele abordasse a narrativa como quisesse, já que o que estava sendo feito era uma obra paralela à sua. Mas como "alguém poderia condensar toda a pesquisa histórica, toda a discussão filosófica e todas as camadas interpretativas de um livro de mais de 500 páginas, fruto da inteligência e erudição de um dos maiores pensadores europeus do século passado?" É a defesa do crítico Eduardo Cesar Maia, que entende que o filme tem uma cara própria e que é essa narrativa que funciona cinematograficamente.

Guilherme de Baskerville se transforma num detetive hábil que usa a lógica de Aristóteles, a teologia de Tomás de Aquino, os insights empíricos de Roger Bacon – e tudo isso é aguçado pela atuação espetacular de Sean Connery, que acentua a curiosidade feroz e o humor ácido do frade franciscano. Ele e seu assistente, interpretado por Christian Slater, coletam evidências, decifram símbolos secretos e manuscritos codificados e até se perdem no misterioso labirinto que é a biblioteca da abadia.

O filme torna visível o mundo que Eco retratou: o século 14, com suas superstições sombrias, paixões ocultas e diversas disputas de poder dentro do clero. É impossível não querer desesperadamente folhear as páginas dos livros proibidos ou participar dos julgamentos (absurdos) da Inquisição. Afinal, é como mergulhar num livro de história e participar das discussões mais relevantes da época ou ainda ser testemunha de um verdadeiro CSI medieval.

A Idade Média povoa nosso imaginário há tempos – não é à toa que William Shakespeare também reescreveu temas medievais (Macbeth já foi tema em outra edição do Adaptação! Confira o texto sobre o livro e o filme). E para Umberto Eco, um grande pesquisador do período, é óbvio dizer que muitos dos problemas atuais da Europa (e do mundo ocidental, como um todo) tomaram forma durante o Medievo – democracia comunal e economia bancária, monarquias nacionais e vida urbana, novas tecnologias e rebeliões dos pobres.

 

“A Idade Média é a nossa infância, à qual devemos sempre retornar, para a anamnese.”

Eco falando sobre a escrita do livro em artigo para o New York Times

 

Apesar de ambientada no medievo, a história fala sobre os fanatismos e fundamentalismos presentes em todos os tempos – especialmente em nosso. Ainda, segundo o crítico Eduardo Cesar Maia, este tema perpassa várias das obras de Eco, não só as literárias como as filosóficas: a defesa do princípio de tolerância com base num certo tipo de ceticismo epistêmico, fundamentado na aceitação de que só podemos acessar a realidade de forma limitada e, portanto, não deveríamos permitir que um discurso único (seja científico, político, religioso, etc) dite o que somos, o que podemos ou não ser de maneira absoluta.

 

O AUTOR

Umberto Eco nasceu em Alessandria, na Itália, em 5 de janeiro de 1932. Na universidade, dedicou-se à literatura e à filosofia, tendo a estética medieval e os textos de Tomás de Aquino como base. Formou-se, em 1954, pela Universidade de Turim, sob a orientação do filósofo Luigi Pareyson. É mais conhecido por sua contribuição nos estudos sobre a semiótica e sua relação com filosofia e obras de arte. A partir de 1975, passou a lecionar na Universidade de Bolonha, mas também foi professor nas universidades de Harvard, Yale, Columbia, Toronto, Collège de France, além de responsável por fundar o Departamento de Comunicação na Universidade de San Marino.

Dentre suas obras mais conhecidas estão A obra aberta (1962), Apocalípticos (1964) e A estrutura ausente (1968). Em 1980, lança o mundialmente famoso O Nome da Rosa, seu romance de estreia, e, oito anos depois, o igualmente aclamado O pêndulo de Foucault.

Seu conceito de “obra aberta” rompe com a ideia que um objeto artístico tem uma interpretação única e fechada determinada pelo artista. Ao contrário, por ser inacabado, coloca o ato da leitura como central e faz do leitor a personagem principal do universo ficcional.

Além de escritor e professor acadêmico, foi editor de Cultura na televisão e escreveu para inúmeros jornais da imprensa italiana – em especial na revista L’Espresso e no diário Repubblica – que lhe deram considerável popularidade, em virtude do seu gosto popular – que ia de filmes da Disney a James Bond.

Foi, sem dúvidas, uma das raras inteligências que soube pensar nosso mundo contemporâneo, analisando-o sob diversos ângulos com grande flexibilidade de pensamento. Eco faleceu em casa, em decorrência de um câncer, em 19 de fevereiro de 2016.

 

CURIOSIDADES

Você sabia que o personagem do bibliotecário foi inspirado no escritor argentino Jorge Luis Borges? Umberto Eco era grande admirador do escritor e, como homenagem, criou o personagem Jorge de Burgos, guardião cego da biblioteca. Além disso, a obra tem semelhanças com o conto de Borges, A Biblioteca de Babel.

Umberto Eco era completamente apaixonado por livros! Sua biblioteca pessoal contava com 30 mil volumes que, após a morte do intelectual, em 2016, foram divididos entre uma das principais bibliotecas estatais e a melhor universidade pública italiana. Os livros antigos foram doados à Biblioteca Nazionale Braidense, de Milão; os arquivos pessoais de Eco e os livros contemporâneos foram para a Universidade de Bolonha, em regime de comodato por 90 anos. Confira um vídeo do escritor andando na sua biblioteca.

Premiadíssimo: o filme O Nome da Rosa (1986) recebeu 17 prêmios, entre eles o César de melhor filme estrangeiro, o BAFTA de Melhor Ator e Melhor Maquiagem, e cinco prêmios David di Donatello, maior premiação do cinema italiano. 

 

DICAS DO LING

Ficou com vontade de ler esse superclássico de Umberto Eco? A editora Record lançou uma edição de luxo, com revisão da tradutora Ivone Benedetti, uma biografia atualizada do autor, notas de revisão e um glossário com a tradução dos termos em latim que aparecem no texto. 

Quer saber um pouco sobre o processo de criação do autor? Neste artigo, publicado originalmente em 1984 pelo New York Times, Umberto Eco fala sobre a escrita do livro.

Confira a minissérie inspirada na obra O Nome da Rosa, lançada em 2020 pelo serviço de streaming Starz. A coprodução ítalo-germânica está dividida em oito capítulos com mais ou menos 50 minutos de duração (cada episódio). Se difere do livro e do filme por ampliar o papel das mulheres na trama! Veja o trailer.

Além do aclamado O Nome da Rosa, outro grande sucesso do diretor Jean-Jacques Annaud foi o filme Sete Anos no Tibet (1997), protagonizado por Brad Pitt.  Ele está disponível nas plataformas de streaming Netflix, Prime Video ou para locação no YouTube Movies e Google Play.

 

REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. O nome da rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

NETTO, Andrei. Umberto Eco deixa legado em estudos da filosofia da arte, na comunicação e na literatura. Agência Estado. 2016. Disponível em: https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_cultura/umberto-eco-deixa-legado-em-estudos-da-filosofia-da-arte-na-comunicacao-e-na-literatura

MAIA, Eduardo Cesar. O Nome da Rosa agora na TV. Revista Continente. 2020. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/235/ro-nome-da-rosar--agora-na-tv