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Instituto Ling apresenta show de Sandra Pêra em homenagem a Belchior

No espetáculo Sandra Pêra em Belchior, mesmo título do álbum disponível nas plataformas digitais, ela revisita sucessos como A Palo Seco, Velha Roupa Colorida, Medo de Avião e Paralelas. No palco, seus companheiros são Mimi Lessa (guitarra), Lourival Franco (teclado), Pedro Peres (contrabaixo) e Flavio Santos (contrabaixo).

Em entrevista ao Instituto Ling, Sandra conta que, apesar de ter convivido com Belchior, não tinha em seu horizonte gravar suas músicas. O convite partiu de Kati Almeida Braga, dona da gravadora Biscoito Fino: “Um dia, num jantar, estávamos ouvindo o disco que Fagner havia lançado com uma nova versão de Mucuripe (a parceria dele com Belchior foi regravada no álbum Serestas, de 2020). Comentei como achava linda essa música e a Kati perguntou se eu não gostaria de gravar um disco sobre Belchior. Imediatamente respondi que sim”.

Aceito o convite, a seleção do repertório foi rápida e tranquila, diz Sandra. Assim que chegou em casa, começou a ouvir Belchior. De cara, viu que não gravaria Como Nossos Pais, por achar que este clássico da música brasileira tem um registro muito marcado por Elis Regina (1945-1982). A canção Balada de Madame Frigidaire entrou na pré-seleção, mas não ficou entre as 11 escolhidas apesar da “letra muito teatral e engraçada”, segundo a artista. O processo de filtragem contou com ajuda de Amora Pêra, filha de Sandra com o cantor Gonzaguinha (1945-1991), coprodutora do álbum.

 

Nascida e criada artista

Atuar e cantar são paixões interligadas na vida e carreira de Sandra. É filha e neta de atores e irmã de Marília Pêra (1943-2015), uma das grandes estrelas da dramaturgia brasileira. Sandra atuava em espetáculos teatrais e musicais quando, em 1977, ficou nacionalmente conhecida integrando o grupo feminino As Frenéticas, que emergiu na explosão da disco music no Brasil. Gravaram cinco discos, quatro com Sandra na formação. Natural, portanto, que suas versões para as canções de Belchior carreguem esse DNA performático. A poesia e a música do compositor ganham de Sandra uma carga de dramaticidade na interpretação:

“Trago o teatro nacional no meu colo. Então, o texto é uma coisa muito importante para mim. Eu sou louca pelas palavras. É a primeira coisa que me atrai em uma música. Quando eu olho, tem uma atriz ali na minha frente como cantora. Eu até gostaria de deixá-la um pouquinho para trás. Mas às vezes eu acho que ela me desobedece e passa um pouquinho à frente. É inevitável, essa carga teatral vem com tudo. A teatralidade é enorme dentro de mim”.

 

Medo de avião

No show, Sandra conta algumas histórias. Como a de Belchior ter feito para ela Medo de Avião, típico exemplo do dito “quando a lenda se torna realidade, imprima-se a lenda”. A canção foi gravada por ele no LP Era uma Vez um Homem e seu Tempo (1979). Sandra já tentou esclarecer o fato, mas assumiu a versão: “Foi uma viagem longa para Fortaleza, com as Frenéticas, e o Belchior se sentou ao meu lado. Era o dia do meu aniversário. O avião sacudiu, eu chorei, pedi a mão dele. Teve uma coisa bonitinha que ele fez. Foi na cabine, pegou o microfone do piloto e falou ‘senhoras e senhores passageiros, atenção, atenção, atenção, quero que todo mundo cante parabéns porque é aniversário da Sandra Pêra’”.

Belchior passou, então, a dizer que tinha feito Medo de Avião para ela. “Dava a sensação de que eu tinha tido um romance com ele, o que não é verdade. Sempre brinco que meu compositor era outro. Sandra conta que, após a morte de Belchior, recebeu do acervo do artista um vídeo em que ele fala sobre essa viagem: “Eu teria dito para ele que sempre pegava na mão de quem se sentasse no meu lado no avião, o que é verdade, encosto no ombro, choro. Mas não lembro de ter viajado com o Belchior antes dessa música ser lançada, para mim ela já existia na época. Mas enfim, a memória da gente prega peças, né? Agora eu assumi que a música foi feita para mim e acabou”.

 

Convidados especiais

Além das escolhas do repertório, Sandra buscou parcerias para interpretar algumas canções. Zeca Baleiro participa de Na Hora do Almoço, faixa de 1974 que apresentou Belchior ao Brasil em um videoclipe do programa Fantástico: “É uma obra-prima. Eu trabalhei com o Zeca em 2001 em um espetáculo chamado Mãe Gentil, que contava com 60 crianças da periferia de São Paulo, e, depois, do Rio de Janeiro. Foi um grande sucesso, lindo, com música e dança. Adoro o repertório do Zeca, é um homem delicado com uma voz maravilhosa”.

Com seu amigo Ney Matogrosso ela canta Velha Roupa Colorida, que ganhou uma releitura jazzy e sensual em clima de cabaré: “Eu, Regina Chaves e Lidoka moramos com o Ney quando começamos com As Frenéticas, em um apartamento no Leblon. Éramos mais que irmãos, muito íntimos, o Ney faz parte da minha história. Acho que foi a primeira gravação dele na pandemia, a primeira vez que saiu para cantar. Nós quisemos fazer diferente da versão da Elis, com um final mais suave, apesar daquela teatralidade toda. Quis gravar Velha Roupa Colorida porque acho que tem tudo a ver com a minha história e a dele”.

Quem também marca presença no álbum, em Galos Noites e Quintais, é Juliana Linhares, cantora do Rio Grande do Norte que faz carreira como atriz no Rio. Ela foi apresentada a Sandra por Amora, que também participa da releitura de Pequeno Mapa do Tempo com seu grupo, Chicas, completado por Paula Leal e a Isadora Medella.

 

Jornada final

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes nasceu na cidade de Sobral, no Ceará, em 26 de outubro de 1946. Teve uma formação intelectual bastante sólida tanto na música quanto na literatura. Mudou-se para Fortaleza em 1962, onde formou-se em filosofia. Passou uma temporada vivendo em um mosteiro, onde aprimorou seu conhecimento em latim. Estudava medicina quando a carreira artística o seduziu. Abandonou o curso e alimentou com Fagner, Ednardo e Amelinha, entre outros nomes da cena local, o sonho de viver da música no centro do país, no começo dos anos 1970. As gravações por Elis Regina, em 1975, das músicas Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida consolidou o talento emergente de Belchior, que ele próprio viria a consolidar no ano seguinte com seu segundo disco, Alucinação, reconhecido como um dos mais importantes da história da MPB.

O anúncio da morte de Belchior, em 30 de abril de 2017, aos 70 anos, chocou e comoveu seus fãs. Era o ponto final de uma jornada misteriosa e até hoje não devidamente esclarecida a qual ele havia ensaiado a partir de 2006 e concluído em 2008, quando desapareceu de vez. Rompeu laços familiares, abandonou dois carros em estacionamentos de São Paulo e deixou para trás uma carreira bem-sucedida, dívidas, processos judiciais e muitas perguntas.

Em 2009, Belchior reapareceu em Brasília, onde participou de um show de Tom Zé. Nesse mesmo ano, uma equipe do Fantástico seguiu dicas de turistas brasileiros e o encontrou no Uruguai. Depois de alguma resistência ao contato, o introspectivo e desconfiado cantor disse que trabalhava em um projeto inédito. Sumiu novamente. Reaparecia de forma esporádica em diferentes cidades do Rio Grande do Sul, sempre ao lado de sua companheira de desterro, Edna. Belchior morreu na casa de amigos que o abrigaram, na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, em razão do rompimento, por causas naturais, da artéria aorta.

Sandra Pêra tem sua visão da história que nunca será contada por completo: “Eu acho que não tem resposta. Enquanto eu gravava o disco, li o livro contando a história dele. Nossa, me deu uma tristeza, porque parecia que eu estava vivendo aquilo com ele, aquela loucura. Um homem muito intenso, com todas as suas dores. Um cara que tentou ser padre, que tentou ser médico e na verdade era um artista, poeta, compositor, cantor. Mas ao mesmo tempo era cheio de fantasmas. Aí encontrou uma mulher muito apaixonada que resolveu segui-lo e não botou ele com o pé no chão, voou junto. Essa jornada final do Belchior é quase uma tragédia grega, com ele tentando traduzir A Divina Comédia durante esse trajeto, escrevendo à mão, uma coisa impressionante. Acho que ele talvez tenha embarcado nesse caminho tentando achar uma resposta”.

 

Dicas do Ling

O álbum Sandra Pêra em Belchior está disponível nas plataformas digitais.

Assista ao videoclipe de Velha Roupa Colorida, com Sandra Pêra e Ney Matogrosso.

Sandra Pêra e Zeca Baleiro cantam Na Hora do Almoço. Assista ao videoclipe.

No livro Belchior – Eu Era Apenas um Rapaz Latino-Americano, o jornalista Jotabê Medeiros passa em revista a vida e a obra do cantor e compositor. Detalha bastidores de suas músicas mais famosas e reconstrói as andanças de seus últimos 10 anos de vida.

Com elogios de público e crítica, o documentário Belchior – Apenas um Coração Selvagem (2022) conta a história do artista em primeira pessoa, por meio de canções, poesias e entrevistas, muitas delas raras. Assista online.

 

Referências

GZH. Distante da vida pública, Belchior foi visto no Rio Grande do Sul e Uruguai
Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2017/04/distante-da-vida-publica-belchior-foi-visto-no-rio-grande-do-sul-e-uruguai-9783473.html

DIÁRIO DE PERNAMBUCO – Belchior é o compositor que mais dialoga com a literatura brasileira e mundial, diz pesquisadora
Disponível em https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2017/04/belchior-e-o-compositor-que-mais-dialoga-com-a-literatura-brasileira-e.html

O GLOBO. Ex-Frenética Sandra Pêra relança álbum solo de 1983 em edição que inclui faixas de single raro de 1984

Disponível em https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2022/10/17/ex-frenetica-sandra-pera-relanca-album-solo-de-1983-em-edicao-que-inclui-faixas-de-single-raro-de-1984.html